sábado, 10 de março de 2007

UMA PARÁBOLA: a relação intersubjetiva com Outro


Texto da Aula Magna do CETEBES (Vitória - ES) em 05 de março de 2007.

A parábola do Samaritano[1] é testemunho de “um passado imemorial” (LÉVINAS, 1993, p. 97) ou de uma tradição e de uma experiência. Na parábola percebemos a experiência do vivido e [con]vivido, o mundo das [des]crenças, dos [anti]valores, o mundo da [con]vivência inter[in]dependente, ou seja, o mundo que é mundo com sua submissão às injunções e necessidades dos fatos.

Usando a parábola do Samaritano como metáfora e testemunho posso entender e perceber o “estar com outrem face a face” de Lévinas (2005, p. 32). Nessa parábola o Samaritano é a escória[2], é tratado com muitos invólucros, o “não-ser” (DUSSEL, 1977), mas que viu o “rosto do outro” (LEVINAS, 2005, p. 32), o sujeito concreto ou sujeito encarnado (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 85). O Samaritano adota a atitude de sentir-o-outro-dentro-de-si. Vamos lidar com estes conceitos a partir das Escrituras Sagradas.

Certa vez um professor da Lei judaica se levantou e, querendo encontrar alguma prova contra Jesus que era um mestre de quem ele não gostava muito, perguntou: — Mestre, o que devo fazer para conseguir a vida eterna? Os professores da Lei tinham estas questões relacionadas à vida espiritual, as questões metafísicas.

Esta história aconteceu nas terras da Palestina há muitos milênios atrás. Então o mestre Jesus respondeu: — O que é que os nossos textos sagrados dizem a respeito disso? E como é que você entende o que eles dizem? Como você percebe toda esta vivência? Como você é mediado pelas suas experiências (você mesmo), pelo outro, pelas suas leituras e seus relacionamentos (o mundo)?

O professor da lei respondeu: — “Ame o Senhor, seu Deus, com todo o coração, com toda a alma, com todas as forças e com toda a mente. E ame o seu próximo como você ama a você mesmo”. — A sua resposta está certa! — disse o mestre Jesus. — Faça isso e você viverá. Veja que o mestre não qualificou a vida de “eterna”. Apenas vida.

Porém o professor da Lei querendo complicar a Jesus (o outro), perguntou: — Mas quem é o meu próximo? Uma outra pergunta seria: “sou eu um próximo”? Como ser sendo, sou para outros que no mundo estão e são? O professor da Lei queria buscar limites na sua postura de amar. Então o seu próximo seria outro da mesma classe que ele, outro igual a ele. Ele vê o outro a partir de si mesmo.

Como professor e mestre da lei dado às coisas da religião, dos rituais, do templo era extremamente exclusivista; as regras religiosas estavam acima das vivências humanitárias.

Então Jesus, o mestre continuou assim: – Um homem estava descendo de Jerusalém para Jericó. No caminho alguns ladrões o assaltaram, tiraram a sua roupa, bateram nele e o deixaram quase morto.

Os homens envolvidos na história são claramente judeus. Os professores do diálogo são judeus e o herói da história é um judeu que se misturou com outros povos por isto passou a ser discriminado, rotulado e posto num invólucro – um samaritano. Os samaritanos e os judeus possuíam, quando Jesus usou esse conto, quatro séculos de brigas e discriminações.


1 Os Ladrões

Surgem os ladrões que no relacionamento com o outro agem olhando o outro como alguém que possui algo que pode ser tomado. É assim que eles [con]viviam: o que é teu é meu e eu tomarei. O outro não é um próximo a ser amado, ou a ser sentido dentro, é um meio para obter coisas. O que eu posso tirar de uma pessoa com “deficiência” ou uma pessoa com qualquer necessidade? O que posso roubar dela? Se não posso tirar nada então não há nada também a ser feito por ela, não há porque senti-la dentro de mim.

Jesus aponta para uma primeira forma de relacionamento com o outro: o que é teu é meu e eu tomarei.


2. O Sacerdote e o Levita – um testemunho duplo

Voltando à estrada. Um sacerdote (alguém com a mesma formação religiosa e acadêmica de um dos mestres do diálogo) estava descendo por aquele mesmo caminho. Quando viu o homem, tratou de passar pelo outro lado da estrada. Também um levita (com a mesma formação religiosa e acadêmica do sacerdote) passou por ali. Da mesma forma olhou e foi embora pelo outro lado da estrada. Lévinas me faz refletir que passar ao largo” é a “incompreensão que deriva da preguiça ou da frieza com que passamos, indiferentes, um ao lado do outro. Rolando afirma que:

A oposição implica, de fato, numa resistência. Não porque o outro se apresente como força ou hostilidade: pode ser inerme, indefeso, nu, mas na sua nudez é resistência, enquanto oposição que não se deixa absorver, reconduzir à unidade. Trata-se de uma resistência ética e não física. Por isso, o tirano foge do face-a-face, da dimensão mais original que é a ética (ROLANDO, acesso 20 out. 2005).

Nos textos sagrados havia o seguinte ensino que o sacerdote e o levita sabiam: “Somente se tocassem num cadáver é que os fariam imundo devido as leis cerimoniais[3]. Só teriam absoluta certeza de conservar sua pureza cerimonial se deixassem o homem como estava. Mas também poderiam ter certeza de que não omitiriam o cuidado a uma pessoa com necessidades somente pelo simples fato de ir até ele. Mas, assim não fizeram.

Foram para o outro lado da estrada e deliberadamente evitaram qualquer possibilidade de se verem face-a-face. Deixaram-no onde estava, no seu sofrimento e na sua necessidade. É o encontro de corpos em forma de recusa que afasta as existências e cava o hiato interpessoal. Sartre até os últimos anos antes de sua morte dizia que “o ser-para-o-outro é impossível” (SARTRE, 1997, p. 289 ss), mas em outra obra Sartre abre-se à esperança de um mundo não definitivamente fechado: “o outro é indispensável à minha existência tanto quanto, aliás, ao conhecimento que tenho de mim mesmo” (SARTRE, 1978, p. 16) e Hegel diz: “cada consciência procura a morte do outro” (ARDUINI, 1989, p. 21). É no encontro vivo entre as pessoas, que tem o mesmo sentido que um diálogo das corporalidades, nesse encontro é que se constitui o ser-no-mundo. É através das corporalidades humanas inter-relacionadas que o mundo adquire sentido e se espraia em forma de linguagem. O mesmo dilema pertence aos dois: sacerdote e levita. Dois religiosos, um testemunho duplo, que os professores da lei não sabiam quem era o próximo. É assim que eles [con]viviam – sacerdote e o levita: o que é meu é meu e eu guardarei.

Jesus aponta para uma segunda forma de relacionamento com o outro: o que é meu é meu e eu guardarei.

3 O Samaritano


Um samaritano que estava viajando por aquele caminho chegou até ali. Quando viu o homem ficou com misericórdia (é do reino da afetividade, vem do coração) dele. Então chegou perto dele, limpou os seus ferimentos com azeite e vinho e em seguida os enfaixou. Depois disso, o samaritano colocou-o no seu próprio animal e o levou para uma pensão, onde cuidou dele. Como afirma Lévinas (2005, p. 269) o samaritano faz uma inversão do “em-si”, do “para si” e do “cada um por si” em um eu ético. O samaritano prioriza o “para o outro”. É uma reviravolta radical do outro como meu inferno (Sartre) por sua eleição a uma responsabilidade pelo outro homem irrecusável e incessível. Esse novo giro radical produzir-se-ia no que Lévinas chama de “encontro do rosto de outrem”.

É na relação intersubjetiva (Husserl, 5ª meditação) do eu ao outro, que esse acontecimento (Lévinas) ético, amor e misericórdia, generosidade e obediência, conduz ou eleva acima do ser. “O rosto é o que não se pode matar, ou pelo menos, aquilo cujo sentido consiste em dizer: tu não matarás” (LÉVINAS, 1982, p. 79). É o olhar do outro a impedir qualquer conquista, ou melhor, de acordo com a importante especificação de transcendência e inteligibilidade, o “farás tudo para que o outro viva” (LÉVINAS, 1982, p. 32). Como se o samaritano perguntasse: no rosto do outro há uma presença, uma superioridade, o que posso compreender?

O Tu não matarás é a primeira palavra do rosto. Ora, é uma ordem. Há no aparecer do rosto um mandamento, como se algum senhor me falasse. Apesar de tudo, ao mesmo tempo o rosto de outrem está nu; é o pobre por quem posso tudo e a quem tudo devo. E eu, que sou eu, mas enquanto “primeira pessoa”, sou aquele que encontra processos para responder ao apelo (LÉVINAS, 1982, p. 81).

Então eu digo a Lévinas: sim! No caso do Samaritano, sim! Mas noutros, o encontro com o outro pode acontecer ao contrário, se dá a violência, o ódio, o [pré]conceito, o desprezo, o passar longe, o virar o rosto e o não amar com o mesmo sentimento de Cristo Jesus. Lévinas responde:

Claro. Mas penso que, seja qual for a motivação que explique esta inversão, a análise do rosto [...], com o domínio de outrem e da sua pobreza, com a minha submissão e a minha riqueza, é a primeira. É o pressuposto de todas as relações humanas. [...] Respondo que é o fato da multiplicidade dos homens e a presença do terceiro ao lado de outrem que condicionam as leis e instauram a justiça (LÉVINAS, 1982, p. 81).

O Samaritano via-se diante do único Logos que [pré]existe, que é o próprio mundo, de que ele faz parte, e nenhuma hipótese explicativa é mais clara do que o próprio ato pelo qual ele retoma este mundo inacabado para tentar totalizá-lo e pensá-lo. Quando as pessoas (corporalidades) existentes travam relacionamento, que se forma um universo que constitui como um mundo-da-vida, intersubjetivo, comunitário e solidário. O diálogo corporal mediatiza o intercâmbio mais amplo com o universo cósmico e histórico. O encontro de corpos perfaz a mútua inserção significativa de vidas. É um encontro que perpassa o acolhimento recíproco. Na fala de Jaspers o samaritano é pedagogia existencial (ARDUINI, 1989, p. 21). Mas, você poderá perguntar: mas o outro não é também responsável a meu respeito?


Talvez, mas isso é assunto dele. Um dos temas fundamentais, de que ainda não falamos, [...], é que a relação intersubjetiva é uma relação não-simétrica. Neste sentido, sou responsável por outrem sem esperar a recíproca, ainda que isso me viesse a custar a vida. – A recíproca é assunto dele. Precisamente na medida em que entre outrem e eu a relação não é recíproca é que eu sou sujeição a outrem; e sou sujeito [grifo do autor] essencialmente neste sentido. Sou eu que suporto tudo. Conhece a frase de Dostoievsky: “Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, e eu mais do que os outros”. Não devido a esta ou àquela culpabilidade efetivamente minha, por causa de faltas que tivesse cometido; mas porque sou responsável de uma responsabilidade total, que responde por todos os outros e por tudo o que é dos outros, mesmo pela sua responsabilidade. O eu tem sempre uma responsabilidade a mais do que todos os outros (LÉVINAS, 1982, p, 90-91).

Aqui o mestre Jesus traz a lição do amor verdadeiramente sentido e vivido, que se dá na forma de [re]aprender a ver o amar aos seres humanos. O conhecimento é em todas as suas configurações uma vivência psíquica: é conhecimento do sujeito que conhece.

No dia seguinte, o samaritano entregou duas moedas de prata ao dono da pensão, dizendo: -Tome conta dele. Quando eu passar por aqui na volta, pagarei o que você gastar a mais com ele. Estamos diante outra forma de [con]viver, do homem samaritano: o que é meu é teu também e eu lhe darei.

Jesus aponta para uma terceira forma de relacionamento com o outro: o que é meu é teu também e eu lhe darei.

3.1 O segnificava ser samaritano

O efeito de introduzir um samaritano é devastador. Para aquele professor da lei não havia samaritano que prestasse. Se um samaritano tocasse no corpo de um judeu, mesmo casualmente ou de maneira rápida, o judeu se considerava impuro. Ao chegar em casa passaria por um ritual de purificação. A sombra de um samaritano seria o suficiente para estragar uma comida, tornando-a impura aos olhos de um judeu. Um samaritano seria a última pessoa de quem se poderia esperar misericórdia, alguém que soubesse quem é o próximo. Mas este homem cuidou daquele com necessidades naquele momento. E o seu cuidar só terminou quando colocou o homem num abrigo seguro. Pagou a hospedaria com dois denários por conta, sendo que bastariam 1/12 de um denário, que corresponderiam a um mês de hospedagem. Não foi tudo, quando voltasse pagaria qualquer gasto a mais que o hospede tivesse.

Então o mestre perguntou ao professor da lei: — Na sua opinião, qual desses três foi o próximo do homem assaltado? Qual a relação que vê o próximo como o outro?

— Aquele que o socorreu! — respondeu o professor da lei. E o mestre Jesus conclui: - pois vá e faça a mesma coisa. Faça do que é teu algo que possa ser do outro também.

3.2 A dificuldade de se colocar no lugar do outro


O professor da lei não conseguiu falar a odiada palavra “samaritano”. Observe que ele evitou dizer “foi o samaritano”, preferindo a fórmula longa o que usou de misericórdia para com ele”. Não consegue se ver no lugar do outro. Não tem o outro dentro de si. O estar diante do próximo é o não perguntar. Vê a necessidade e ajuda. Só isso. Nada se opõe ao cuidar. Nem o fato de ser de outro povo, inimigo ou estranho. A única lei que vigora neste campo é a de sentir as necessidades e/ou os limites alheios. O próximo autêntico cuida sem perguntar, nem exigir, sem procurar causa ou recompensa.

3.4 Uma discussão filosófica

O mundo “tem seu horizonte temporal infinito nos dois sentidos”, (LYOTARD, 1967, p. 23) seu passado e seu futuro, conhecidos e desconhecidos, imediatamente vividos e privados de vida. “Enfim este mundo não é meramente um mundo de coisas, mas na mesma forma imediata, como um mundo de valores (beleza e feiúra, gratidão e ingratidão e de bens como mesa, computador, livros, caneta, papel), um mundo prático (são os objetos que estão “aí a diante” para os quais eu me volto ou não). Assim como me volto para as meras coisas, também para as pessoas e animais do meu entorno. São meus amigos ou inimigos, meus servidores, chefes, estranhos ou parentes e assim por diante (HUSSERL, 1992, § 27, p. 66, tradução nossa). Mas, esse mundo contém igualmente um âmbito ideal: se me dedico presentemente à aritmética esse mundo aritmético está ali para mim, diferente da realidade natural na medida em que ele só está ali para mim enquanto tomo a atitude do matemático, ao passo que a realidade natural sempre está ali. Enfim, o mundo natural é também o mundo da inter-subjetividade.

A tese natural, contida implicitamente na atitude natural, é aquilo que permite que eu “descubra (a realidade) como existente e a acolha, como ela se dá a mim, igualmente existente” (HUSSERL, 1992, § 32, p. 73, tradução nossa). É evidente que posso pôr em dúvida os dados do mundo natural, recusar as informações que dele recebo, distinguir, por exemplo, aquilo que é “real do que é “ilusão”. Mas essa dúvida “não altera nada na posição geral da atitude natural” (HUSSERL, 1992, § 32, p. 73, tradução nossa); ela nos faz aceder a uma apreensão desse mundo existente mais “adequada”, mais “rigorosa” do que a que nos dá a percepção imediata; funda a superação do perceber pelo saber científico, mas nesse saber a tese intrínseca à atitude natural se conserva, pois não há ciência que não postule a existência do mundo real do qual é ciência.

“Portanto, o mundo natural, o mundo no sentido habitual da palavra, está constantemente para mim aí, enquanto me deixo viver naturalmente” (HUSSERL, 1992, § 28, p. 67). Para compreender e ampliar os meus horizontes, Husserl afirma para pormos...

fora do jogo a tese geral inerente a essência da atitude natural. Colocamos entre parêntesis todas e cada uma das coisas abarcadas no sentido ôntico por essa tese, assim, pois, este mundo natural inteiro, que está constantemente “para nos aí adiante”, e que seguirá permanentemente aí adiante, como “realidade” de que temos consciência, ainda que nos dê para colocá-la entre parêntesis. [...] desconecto todas as ciências referentes a este mundo natural, por sólidas que me pareçam, por muito que as admire, por pouco que pense em opor-me o mínimo contra elas; eu absolutamente não faço nenhum uso de suas afirmações válidas (HUSSERL, 1992, § 32, p. 73).


3.4 O Samaritano e sua intersubjetividade


Esta parábola aponta para vários sujeitos. Não é o indivíduo. O samaritano (sujeito) que está apontando uma origem, uma gênese[4] aberta, criando uma generatividade, isto é, uma abertura para o futuro. É o sujeito que se origina solidariamente e intersubjetivamente. O sujeito nasce sempre como sujeito intersubjetivo, essa é a gênese. Esse sujeito que nasce intersubjetivamente se desenvolve generativamente e vai se constituindo num mundo cada vez mais solidário. Ao contrário, se a pessoa permanecer na dimensão estática ou descritiva, a tendência será não reconhecer essa gênese intersubjetiva e nem se abrir para uma generatividade. Na parábola o professor da lei só percebe a descrição estática, o imediato da vida, a tendência é da manutenção. Ele não vê as possibilidades criadoras da gênese ativa, por ser criadora e de generatividade. Ele tipifica a pessoa que pensa o imediato, o estático é o definitivo. Esse é o problema da lei, e diante dela não tem como se perguntar pela origem e nem pelo fim. Como fica preso a uma normatização, não percebe o outro como um ser humano dinâmico diante de sua face.

Nessa parábola do mestre Jesus destaco que o sentido é no sujeito uma unidade de valor. A esse respeito na obra a Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty (1994, p. 339) aprofunda esta perspectiva partindo do sujeito como unidade de valor, uma pessoa com sensibilidade (afetividade, coração), vida (alma), corpo (força, encarnação) e cognição (entendimento), é uma pessoa também situada, pois ele é alguém que vive algo e sabe aquilo que vive e sua alma está presente em cada parte do seu corpo, eu completo dizendo que assim é porque ele é alma vivente.

Para a fenomenologia a sensibilidade e a percepção são idênticas no sujeito. É também sua essência, ou melhor seu sentido (eidos). Chauí (2000, p. 122-124) aponta que o que é percebido pelo sujeito é qualitativo, significativo, estruturado e está no que é percebido como sujeito ativo, isto é, dá ao percebido novos sentidos e novos valores, pois as coisas fazem parte da vida e o sujeito interage com o mundo e com outros sujeitos. Na comunicação com outros sujeitos a percepção (o sensível, o afeto) é percebida como o sentido (eidos). Como depende da sócio-historicidade, e da sua intersubjetividade do sujeito este campo é chamado de perceptivo: campo perceptivo ou nos termos de Merleau-Ponty (1994, p. 95-96): “campo fenomenal”. O campo fenomenal envolve significações visuais, tácteis, olfativas, gustativas, sonoras, motrizes, especiais, temporais e lingüísticas. A percepção é uma conduta vital, pois parte da estrutura de relações entre nosso coração[5] (afeto, sensibilidade, percepção, núcleo ou o centro do sujeito na linguagem de Pascal) está ligada ao nosso corpo e o mundo.


Conhecemos a verdade não só pela razão, mas também pelo coração; é desta última maneira que conhecemos os princípios, e é em vão que o raciocínio, que deles não participa, tenta combatê-los. [...] Sabemos que não sonhamos; por maior que seja a nossa impotência em prová-lo pela razão, essa impotência mostra-nos apenas a fraqueza da nossa razão, mas não a certeza de todos os nossos conhecimentos, como pretendem. Pois o conhecimento dos princípios, como o da existência de espaço, tempo, movimentos, números, é tão firme como nenhum dos que nos proporcionam os nossos raciocínios. E sobre esses conhecimentos do coração e do instinto é que a razão deve apoiar-se e basear todo o seu discurso. (O coração sente que há três dimensões no espaço e que os números são infinitos; e a razão demonstra, em seguida, que não há dois números quadrados dos quais um seja o dobro do outro. Os princípios se sentem, as proposições se concluem; e tudo com certeza, embora por vias diferentes.) E é tão inútil e ridículo que a razão peça ao coração provas dos seus princípios primeiros, para concordar com eles, quanto seria ridículo que o coração pedisse à razão um sentimento de todas as proposições que ela demonstra, para recebê-los.

Essa impotência deve, pois, servir apenas para humilhar a razão que quisesse julgar tudo; mas não para combater a nossa certeza, como se apenas a razão fosse capaz de nos instruir. Prouvesse a Deus que, ao contrário, nunca tivéssemos necessidade dela e conhecêssemos todas as coisas por instinto e por sentimento! Mas a natureza recusou­nos esse bem e só nos deu, ao contrário, muito poucos conhecimentos dessa espécie; todos os outros só podem ser adquiridos pelo raciocínio (PASCAL, 1961, n.º 282).

Merleau-Ponty (1994) usa a palavra “percepção”; Pascal (1979) usou “coração”; Chauí (2000) afirma que sensação e percepção têm o mesmo sentido. Portanto, “coração” envolve no sujeito toda a personalidade, sua história pessoal, seus desejos e paixões. A percepção é algo desvelado no sujeito que é o seu sentido (eidos) como maneira de estar e ser no mundo. Percebe-se as coisas como instrumentos ou como valores, reage-se positiva ou negativamente a cores, odores, sabores, texturas, distâncias, tamanhos e muitas outras coisas do mundo. O mundo é percebido/sentido qualitativamente, afetivamente e valorativamente. Quando percebemos uma outra pessoa, por exemplo, uma pessoa com deficiência, ou uma pessoa como aquele que o Samaritano acudiu, não temos uma coleção de sensações e partes que estejam “faltando” do seu corpo, ou de sua mente, mas a percebemos em sua totalidade e por essa relação do “coração” construímos um relacionamento com ela.

O corpo do outro foi o meio pelo qual o Samaritano pode cuidar e expressar seu amor ao próximo. Nesse sentido o corpo é o núcleo do sujeito e no que se refere ao corpo, Lévinas (1992, p. 89) ressalta que o “seu rosto, o expressivo no outro (e todo o corpo humano é, neste sentido mais ou menos, rosto), fosse aquilo que me manda servi-lo”. O especificamente rosto é o que não se reduz a ele. “Aqui o rosto é sentido só para ele. Tu és tu. Neste sentido, pode dizer-se que o rosto não é visto [grifo do autor]” (LÉVINAS, 1982, p. 78).

Compreendemos que o corpo pode simbolizar a existência, é porque a realiza e porque é sua atualidade (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 227). Meu corpo poderá se fechar ao mundo encerrando-me numa vida anônima, mas meu corpo é também aquilo que me abre ao mundo e nele me põe em situação. Por esse prisma Merleau-Ponty afirma que,

Dizer que tenho um corpo é então uma maneira de dizer que posso ser visto como um objeto e que procuro ser visto como sujeito, que o outro pode ser meu senhor ou meu escravo, de forma que o pudor e o despudor exprimem a dialética da pluralidade das consciências e que eles têm sim uma significação metafísica (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 231).

Não é tão simples amar (cuidar) uma pessoa porque o que possuímos não é apenas um corpo, mas um corpo animado por uma consciência. Portanto, a “importância atribuída ao corpo, as contradições do amor ligam-se a um drama mais geral que se refere à estrutura metafísica de meu corpo, ao mesmo tempo objeto para o outro e sujeito para mim” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 231).

Esse corpo se desvela/revela como expressão e fala. Merleau-Ponty descrevendo o fenômeno da fala e o ato expresso de significação ultrapassou definitivamente a dicotomia entre o sujeito e o objeto, e afirma que:

A partir do momento em que o homem se serve da linguagem para estabelecer uma relação viva consigo mesmo ou com seus semelhantes, a linguagem não é mais um instrumento, não é mais um meio, ela é uma manifestação, uma revelação do ser íntimo e do elo psíquico que nos une ao mundo e aos semelhantes (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 266).

O corpo não se reduz a uma propriedade do sujeito. Possui totalidade humana. Não é um instrumento do homem. É modo de ser da pessoa. Afirma Merleau-Ponty que o corpo exprime a existência total, não que seja um acompanhamento externo, mas porque realiza-se nele. A esse respeito, Merleau-Ponty lembra que não posso dizer que tenho meu corpo, mas que sou o meu corpo. Assim como não posso dizer que tenho minha alma, mas que sou minha alma. A minha alma é o meu corpo vivo. O corpo diz fenomenologicamente o todo do meu ser. É nele que se manifestam a consciência, o pensamento (cogitatio), a intenção profunda, a liberdade, o projeto de vida, a necessidade e aspiração, o acolhimento e a recusa, a dor e o júbilo, o amor e a crueldade, a suplica e a prepotência. O corpo é palavra somática.

Quando alguém morre pelo outro, ou doa parte de si mesmo, do seu próprio corpo, temos aí uma palavra contundente. A expressão radical da fala é o dar a sua própria vida pelo outro.

Conclusão

Você precisa deixar sua oferta sobre o altar e se reconciliar com o seu irmão. Para tanto você precisa saber quem é o seu próximo para um aperfeiçoamento na celebração.

Jesus estava dizendo que o seu próximo não é simplesmente aquele que você odeia, mas também aquele que odeia você.

Jesus estava dizendo que o seu próximo são todos aqueles que apresentam uma necessidade de qualquer natureza.

Jesus estava dizendo que eu preciso me ver face-a-face ao outro para senti-lo como o outro, vendo-me também como o outro para alguém.

Pois bem, o aperfeiçoamento no celebrar exige uma decisão: agir com o próximo como o Samaritano agiu.

REFERÊNCIAS

ARDUINI, Juvenal. Destinação antropológica. São Paulo: Ed. Paulinas, 1989.

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Nova Tradução na Linguagem de Hoje. Barueri (SP): Sociedade Bíblica do Brasil, 2000.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 7. ed. São Paulo: Ática, 2000.

DUSSEL, Enrique D. Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão. São Paulo: Paulus, 1995.

______. Filosofia da Libertação. Filosofia na América Latina. São Paulo: Edições Loyola /Editora Unimep, 1977. (Coleção: Reflexão Latino Americana).

LÉVINAS, Emmanuel. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Lisboa, Portugal: Instituto Piaget, 1967.

______. Totalidade e Infinito. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1980. (Biblioteca de Filosofia Contemporânea).

______. Ética e Infinito: diálogos com Philippe Nemo. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1982. (Biblioteca de Filosofia Contemporânea).

______. Humanismo do outro homem. Tradução de Pergentino Stefano Pivatto (coord.) et all. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.

______. De Deus que vem a idéia. Tradução de Pergentino Stefano Pivatto (coord.) et all. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

______. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. 2. ed. Tradução de Pergentino Stefano Pivatto (coord.) et all. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.

HUSSERL, Edmund. Ideas relativas a uma fenomenologia pura y uma filosofia fenomenologica. 2. ed. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1992. (Sección de Obras de Filosofía).

_____. Meditações cartesianas: introdução à fenomenologia. São Paulo: Madras, 2001.

LYOTARD, Jean-François. A Fenomenologia. São Paulo: Difel, 1967. (Coleção Saber Atual).

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994. – (Coleção Tópicos).

SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada. Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

ROLANDO, Rossana. Emmanuel Levinas: para uma sociedade sem tiranias. Educ. Soc. [online]. Oct. 2001, vol. 22, n.º 76 [cited 13 September 2005], p. 76-93. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302001000300005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 out. 2005 (ISSN 0101-7330).


[1] Bíblia Sagrada, Novo Testamento, Evangelho de Lucas capítulo 10 (página 60) - [25] Um mestre da Lei se levantou e, querendo encontrar alguma prova contra Jesus, perguntou: - Mestre, o que devo fazer para conseguir a vida eterna?

[26] Jesus respondeu: - O que é que as Escrituras Sagradas dizem a respeito disso? E como é que você entende o que elas dizem? [27] O homem respondeu: - “Ame o Senhor, seu Deus, com todo o coração, com toda a alma, com todas as forças e com toda a mente. E ame o seu próximo como você ama a você mesmo”.

[28] – A sua resposta está certa! – disse Jesus. – Faça isso e você viverá.

[29] Porém o mestre da Lei, querendo se desculpar, perguntou: — Mas quem é o meu próximo?

[30] Jesus respondeu assim: - Um homem estava descendo de Jerusalém para Jericó. No caminho alguns ladrões o assaltaram, tiraram a sua roupa, bateram nele e o deixaram quase morto. [31] Acontece que um sacerdote estava descendo por aquele mesmo caminho. Quando viu o homem, tratou de passar pelo outro lado da estrada. [32] Também um levita passou por ali. Olhou e também foi embora pelo outro lado da estrada. [33] Mas um samaritano que estava viajando por aquele caminho chegou até ali. Quando viu o homem, ficou com muita pena dele. [34] Então chegou perto dele, limpou os seus ferimentos com azeite e vinho e em seguida os enfaixou. Depois disso, o samaritano colocou-o no seu próprio animal e o levou para uma pensão, onde cuidou dele. [35] No dia seguinte, entregou duas moedas de prata ao dono da pensão, dizendo: - Tome conta dele. Quando eu passar por aqui na volta, pagarei o que você gastar a mais com ele. [36] Então Jesus perguntou ao mestre da Lei: - Na sua opinião, qual desses três foi o próximo do homem assaltado? [37] Aquele que o socorreu! – respondeu o mestre da Lei. E Jesus disse: - Pois vá e faça a mesma coisa.

[2] “Escória” por pertencer a um povo mestiço, por terem misturado-se com babilônicos e árabes; por ter um outro lugar de adoração com imagens de deuses babilônios e árabes combinando com o culto de Israel. A religiosidade praticada pelos samaritanos crescia e os judeus sentiam repugnância em manter relações sociais e religiosas com os samaritanos. Não permitiam a adoração deles no Templo de Jerusalém.

[3] Bíblia Sagrada, Antigo Testamento, Levítico capítulo 21. verso 1 e seguintes (pág. 83) [1] O SENHOR Deus mandou Moisés dizer o seguinte aos sacerdotes, que são descendentes de Arão: — Que nenhum sacerdote fique impuro por tocar no corpo de um parente morto [grifo nosso], [2] a não ser no caso de parentes chegados, isto é, a mãe, o pai, o filho, a filha, o irmão [3] ou a irmã solteira que more com ele.

[4] Ver item 5.6 Proposições provisórias sobre estática, gênese e generação (p. 134).

[5] Pascal relativiza a certeza puramente racional e matemática: “Conhecemos a verdade, não só pela razão, mas também pelo coração” (PASCAL, 1961, n.º 282). Com o coração, de maneira perceptiva, conhecemos o campo fenomenal que envolve significações visuais, tácteis, olfativas, gustativas, sonoras, motrizes, especiais, temporais e lingüísticas.

2 comentários:

  1. Parabéns Professor,é um blog muito interessante, e fica registrada minha gratidão pelo exelente trabalho que vem prestando como educador... sua mensagem na aula magna é extremamente pertinente ao nosso tempo, onde nossa visão do "próximo" anda meio destorcida.
    obrigado, e que Deus o abençoe.
    Um abraço...zuccon...

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  2. Qohélet
    "Névoa de nadas § disse O-que-Sabe §§ névoa de nadas § tudo névoa-nada/ Que proveito § para o homem §§§ De todo o seu afã §§ Fadiga de afazeres § sob o sol/ Geração-que-vai § e geração-que-vem e a terra § durando para sempre/ E o sol desponta § e o sol se põe §§§ E ao mesmo ponto §§ aspira § de onde ele reponta/ Vai § rumo ao sul §§ e volve § rumo ao norte §§ Volve revolve § o vento vai §§ E às voltas revôlto § o vento volta"


    Belo estudo! Parabéns pelo blog!

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