Texto da Aula Magna do CETEBES (Vitória - ES) em 05 de março de 2007.
A parábola do Samaritano[1] é testemunho de “um passado imemorial” (LÉVINAS, 1993, p. 97) ou de uma tradição e de uma experiência. Na parábola percebemos a experiência do vivido e [con]vivido, o mundo das [des]crenças, dos [anti]valores, o mundo da [con]vivência inter[in]dependente, ou seja, o mundo que é mundo com sua submissão às injunções e necessidades dos fatos.
Certa vez um professor da Lei judaica se levantou e, querendo encontrar alguma prova contra Jesus que era um mestre de quem ele não gostava muito, perguntou: — Mestre, o que devo fazer para conseguir a vida eterna? Os professores da Lei tinham estas questões relacionadas à vida espiritual, as questões metafísicas.
Esta história aconteceu nas terras da Palestina há muitos milênios atrás. Então o mestre Jesus respondeu: — O que é que os nossos textos sagrados dizem a respeito disso? E como é que você entende o que eles dizem? Como você percebe toda esta vivência? Como você é mediado pelas suas experiências (você mesmo), pelo outro, pelas suas leituras e seus relacionamentos (o mundo)?
O professor da lei respondeu: — “Ame o Senhor, seu Deus, com todo o coração, com toda a alma, com todas as forças e com toda a mente. E ame o seu próximo como você ama a você mesmo”. — A sua resposta está certa! — disse o mestre Jesus. — Faça isso e você viverá. Veja que o mestre não qualificou a vida de “eterna”. Apenas vida.
Porém o professor da Lei querendo complicar a Jesus (o outro), perguntou: — Mas quem é o meu próximo? Uma outra pergunta seria: “sou eu um próximo”? Como ser sendo, sou para outros que no mundo estão e são? O professor da Lei queria buscar limites na sua postura de amar. Então o seu próximo seria outro da mesma classe que ele, outro igual a ele. Ele vê o outro a partir de si mesmo.
Como professor e mestre da lei dado às coisas da religião, dos rituais, do templo era extremamente exclusivista; as regras religiosas estavam acima das vivências humanitárias.
Então Jesus, o mestre continuou assim: – Um homem estava descendo de Jerusalém para Jericó. No caminho alguns ladrões o assaltaram, tiraram a sua roupa, bateram nele e o deixaram quase morto.
Os homens envolvidos na história são claramente judeus. Os professores do diálogo são judeus e o herói da história é um judeu que se misturou com outros povos por isto passou a ser discriminado, rotulado e posto num invólucro – um samaritano. Os samaritanos e os judeus possuíam, quando Jesus usou esse conto, quatro séculos de brigas e discriminações.
1 Os Ladrões
Surgem os ladrões que no relacionamento com o outro agem olhando o outro como alguém que possui algo que pode ser tomado. É assim que eles [con]viviam: o que é teu é meu e eu tomarei. O outro não é um próximo a ser amado, ou a ser sentido dentro, é um meio para obter coisas. O que eu posso tirar de uma pessoa com “deficiência” ou uma pessoa com qualquer necessidade? O que posso roubar dela? Se não posso tirar nada então não há nada também a ser feito por ela, não há porque senti-la dentro de mim.
Jesus aponta para uma primeira forma de relacionamento com o outro: o que é teu é meu e eu tomarei.
2. O Sacerdote e o Levita – um testemunho duplo
A oposição implica, de fato, numa resistência. Não porque o outro se apresente como força ou hostilidade: pode ser inerme, indefeso, nu, mas na sua nudez é resistência, enquanto oposição que não se deixa absorver, reconduzir à unidade. Trata-se de uma resistência ética e não física. Por isso, o tirano foge do face-a-face, da dimensão mais original que é a ética (ROLANDO, acesso
Foram para o outro lado da estrada e deliberadamente evitaram qualquer possibilidade de se verem face-a-face. Deixaram-no onde estava, no seu sofrimento e na sua necessidade. É o encontro de corpos em forma de recusa que afasta as existências e cava o hiato interpessoal. Sartre até os últimos anos antes de sua morte dizia que “o ser-para-o-outro é impossível” (SARTRE, 1997, p. 289 ss), mas em outra obra Sartre abre-se à esperança de um mundo não definitivamente fechado: “o outro é indispensável à minha existência tanto quanto, aliás, ao conhecimento que tenho de mim mesmo” (SARTRE, 1978, p. 16) e Hegel diz: “cada consciência procura a morte do outro” (ARDUINI, 1989, p. 21). É no encontro vivo entre as pessoas, que tem o mesmo sentido que um diálogo das corporalidades, nesse encontro é que se constitui o ser-no-mundo. É através das corporalidades humanas inter-relacionadas que o mundo adquire sentido e se espraia em forma de linguagem. O mesmo dilema pertence aos dois: sacerdote e levita. Dois religiosos, um testemunho duplo, que os professores da lei não sabiam quem era o próximo. É assim que eles [con]viviam – sacerdote e o levita: o que é meu é meu e eu guardarei.
Jesus aponta para uma segunda forma de relacionamento com o outro: o que é meu é meu e eu guardarei.
3 O Samaritano
Um samaritano que estava viajando por aquele caminho chegou até ali. Quando viu o homem ficou com misericórdia (é do reino da afetividade, vem do coração) dele. Então chegou perto dele, limpou os seus ferimentos com azeite e vinho e em seguida os enfaixou. Depois disso, o samaritano colocou-o no seu próprio animal e o levou para uma pensão, onde cuidou dele. Como afirma Lévinas (2005, p. 269) o samaritano faz uma inversão do “em-si”, do “para si” e do “cada um por si” em um eu ético. O samaritano prioriza o “para o outro”. É uma reviravolta radical do outro como meu inferno (Sartre) por sua eleição a uma responsabilidade pelo outro homem irrecusável e incessível. Esse novo giro radical produzir-se-ia no que Lévinas chama de “encontro do rosto de outrem”.
É na relação intersubjetiva (Husserl, 5ª meditação) do eu ao outro, que esse acontecimento (Lévinas) ético, amor e misericórdia, generosidade e obediência, conduz ou eleva acima do ser. “O rosto é o que não se pode matar, ou pelo menos, aquilo cujo sentido consiste em dizer: tu não matarás” (LÉVINAS, 1982, p. 79). É o olhar do outro a impedir qualquer conquista, ou melhor, de acordo com a importante especificação de transcendência e inteligibilidade, o “farás tudo para que o outro viva” (LÉVINAS, 1982, p. 32). Como se o samaritano perguntasse: no rosto do outro há uma presença, uma superioridade, o que posso compreender?
O Tu não matarás é a primeira palavra do rosto. Ora, é uma ordem. Há no aparecer do rosto um mandamento, como se algum senhor me falasse. Apesar de tudo, ao mesmo tempo o rosto de outrem está nu; é o pobre por quem posso tudo e a quem tudo devo. E eu, que sou eu, mas enquanto “primeira pessoa”, sou aquele que encontra processos para responder ao apelo (LÉVINAS, 1982, p. 81).
Então eu digo a Lévinas: sim! No caso do Samaritano, sim! Mas noutros, o encontro com o outro pode acontecer ao contrário, se dá a violência, o ódio, o [pré]conceito, o desprezo, o passar longe, o virar o rosto e o não amar com o mesmo sentimento de Cristo Jesus. Lévinas responde:
Claro. Mas penso que, seja qual for a motivação que explique esta inversão, a análise do rosto [...], com o domínio de outrem e da sua pobreza, com a minha submissão e a minha riqueza, é a primeira. É o pressuposto de todas as relações humanas. [...] Respondo que é o fato da multiplicidade dos homens e a presença do terceiro ao lado de outrem que condicionam as leis e instauram a justiça (LÉVINAS, 1982, p. 81).
Talvez, mas isso é assunto dele. Um dos temas fundamentais, de que ainda não falamos, [...], é que a relação intersubjetiva é uma relação não-simétrica. Neste sentido, sou responsável por outrem sem esperar a recíproca, ainda que isso me viesse a custar a vida. – A recíproca é assunto dele. Precisamente na medida em que entre outrem e eu a relação não é recíproca é que eu sou sujeição a outrem; e sou sujeito [grifo do autor] essencialmente neste sentido. Sou eu que suporto tudo. Conhece a frase de Dostoievsky: “Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, e eu mais do que os outros”. Não devido a esta ou àquela culpabilidade efetivamente minha, por causa de faltas que tivesse cometido; mas porque sou responsável de uma responsabilidade total, que responde por todos os outros e por tudo o que é dos outros, mesmo pela sua responsabilidade. O eu tem sempre uma responsabilidade a mais do que todos os outros (LÉVINAS, 1982, p, 90-91).
Aqui o mestre Jesus traz a lição do amor verdadeiramente sentido e vivido, que se dá na forma de [re]aprender a ver o amar aos seres humanos. O conhecimento é em todas as suas configurações uma vivência psíquica: é conhecimento do sujeito que conhece.
No dia seguinte, o samaritano entregou duas moedas de prata ao dono da pensão, dizendo: -Tome conta dele. Quando eu passar por aqui na volta, pagarei o que você gastar a mais com ele. Estamos diante outra forma de [con]viver, do homem samaritano: o que é meu é teu também e eu lhe darei.
Jesus aponta para uma terceira forma de relacionamento com o outro: o que é meu é teu também e eu lhe darei.
3.1 O segnificava ser samaritano
O efeito de introduzir um samaritano é devastador. Para aquele professor da lei não havia samaritano que prestasse. Se um samaritano tocasse no corpo de um judeu, mesmo casualmente ou de maneira rápida, o judeu se considerava impuro. Ao chegar em casa passaria por um ritual de purificação. A sombra de um samaritano seria o suficiente para estragar uma comida, tornando-a impura aos olhos de um judeu. Um samaritano seria a última pessoa de quem se poderia esperar misericórdia, alguém que soubesse quem é o próximo. Mas este homem cuidou daquele com necessidades naquele momento. E o seu cuidar só terminou quando colocou o homem num abrigo seguro. Pagou a hospedaria com dois denários por conta, sendo que bastariam 1/12 de um denário, que corresponderiam a um mês de hospedagem. Não foi tudo, quando voltasse pagaria qualquer gasto a mais que o hospede tivesse.
Então o mestre perguntou ao professor da lei: — Na sua opinião, qual desses três foi o próximo do homem assaltado? Qual a relação que vê o próximo como o outro?
— Aquele que o socorreu! — respondeu o professor da lei. E o mestre Jesus conclui: - pois vá e faça a mesma coisa. Faça do que é teu algo que possa ser do outro também.
O professor da lei não conseguiu falar a odiada palavra “samaritano”. Observe que ele evitou dizer “foi o samaritano”, preferindo a fórmula longa “o que usou de misericórdia para com ele”. Não consegue se ver no lugar do outro. Não tem o outro dentro de si. O estar diante do próximo é o não perguntar. Vê a necessidade e ajuda. Só isso. Nada se opõe ao cuidar. Nem o fato de ser de outro povo, inimigo ou estranho. A única lei que vigora neste campo é a de sentir as necessidades e/ou os limites alheios. O próximo autêntico cuida sem perguntar, nem exigir, sem procurar causa ou recompensa.
3.4 Uma discussão filosófica
O mundo “tem seu horizonte temporal infinito nos dois sentidos”, (LYOTARD, 1967, p. 23) seu passado e seu futuro, conhecidos e desconhecidos, imediatamente vividos e privados de vida. “Enfim este mundo não é meramente um mundo de coisas, mas na mesma forma imediata, como um mundo de valores (beleza e feiúra, gratidão e ingratidão e de bens como mesa, computador, livros, caneta, papel), um mundo prático (são os objetos que estão “aí a diante” para os quais eu me volto ou não). Assim como me volto para as meras coisas, também para as pessoas e animais do meu entorno. São meus amigos ou inimigos, meus servidores, chefes, estranhos ou parentes e assim por diante (HUSSERL, 1992, § 27, p. 66, tradução nossa). Mas, esse mundo contém igualmente um âmbito ideal: se me dedico presentemente à aritmética esse mundo aritmético está ali para mim, diferente da realidade natural na medida em que ele só está ali para mim enquanto tomo a atitude do matemático, ao passo que a realidade natural sempre está ali. Enfim, o mundo natural é também o mundo da inter-subjetividade.
A tese natural, contida implicitamente na atitude natural, é aquilo que permite que eu “descubra (a realidade) como existente e a acolha, como ela se dá a mim, igualmente existente” (HUSSERL, 1992, § 32, p. 73, tradução nossa). É evidente que posso pôr em dúvida os dados do mundo natural, recusar as informações que dele recebo, distinguir, por exemplo, aquilo que é “real do que é “ilusão”. Mas essa dúvida “não altera nada na posição geral da atitude natural” (HUSSERL, 1992, § 32, p. 73, tradução nossa); ela nos faz aceder a uma apreensão desse mundo existente mais “adequada”, mais “rigorosa” do que a que nos dá a percepção imediata; funda a superação do perceber pelo saber científico, mas nesse saber a tese intrínseca à atitude natural se conserva, pois não há ciência que não postule a existência do mundo real do qual é ciência.
“Portanto, o mundo natural, o mundo no sentido habitual da palavra, está constantemente para mim aí, enquanto me deixo viver naturalmente” (HUSSERL, 1992, § 28, p. 67). Para compreender e ampliar os meus horizontes, Husserl afirma para pormos...
fora do jogo a tese geral inerente a essência da atitude natural. Colocamos entre parêntesis todas e cada uma das coisas abarcadas no sentido ôntico por essa tese, assim, pois, este mundo natural inteiro, que está constantemente “para nos aí adiante”, e que seguirá permanentemente aí adiante, como “realidade” de que temos consciência, ainda que nos dê para colocá-la entre parêntesis. [...] desconecto todas as ciências referentes a este mundo natural, por sólidas que me pareçam, por muito que as admire, por pouco que pense em opor-me o mínimo contra elas; eu absolutamente não faço nenhum uso de suas afirmações válidas (HUSSERL, 1992, § 32, p. 73).
3.4 O Samaritano e sua intersubjetividade
Esta parábola aponta para vários sujeitos. Não é o indivíduo. O samaritano (sujeito) que está apontando uma origem, uma gênese[4] aberta, criando uma generatividade, isto é, uma abertura para o futuro. É o sujeito que se origina solidariamente e intersubjetivamente. O sujeito nasce sempre como sujeito intersubjetivo, essa é a gênese. Esse sujeito que nasce intersubjetivamente se desenvolve generativamente e vai se constituindo num mundo cada vez mais solidário. Ao contrário, se a pessoa permanecer na dimensão estática ou descritiva, a tendência será não reconhecer essa gênese intersubjetiva e nem se abrir para uma generatividade. Na parábola o professor da lei só percebe a descrição estática, o imediato da vida, a tendência é da manutenção. Ele não vê as possibilidades criadoras da gênese ativa, por ser criadora e de generatividade. Ele tipifica a pessoa que pensa o imediato, o estático é o definitivo. Esse é o problema da lei, e diante dela não tem como se perguntar pela origem e nem pelo fim. Como fica preso a uma normatização, não percebe o outro como um ser humano dinâmico diante de sua face.
Nessa parábola do mestre Jesus destaco que o sentido é no sujeito uma unidade de valor. A esse respeito na obra a Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty (1994, p. 339) aprofunda esta perspectiva partindo do sujeito como unidade de valor, uma pessoa com sensibilidade (afetividade, coração), vida (alma), corpo (força, encarnação) e cognição (entendimento), é uma pessoa também situada, pois ele é alguém que vive algo e sabe aquilo que vive e sua alma está presente em cada parte do seu corpo, eu completo dizendo que assim é porque ele é alma vivente.
Para a fenomenologia a sensibilidade e a percepção são idênticas no sujeito. É também sua essência, ou melhor seu sentido (eidos). Chauí (2000, p. 122-124) aponta que o que é percebido pelo sujeito é qualitativo, significativo, estruturado e está no que é percebido como sujeito ativo, isto é, dá ao percebido novos sentidos e novos valores, pois as coisas fazem parte da vida e o sujeito interage com o mundo e com outros sujeitos. Na comunicação com outros sujeitos a percepção (o sensível, o afeto) é percebida como o sentido (eidos). Como depende da sócio-historicidade, e da sua intersubjetividade do sujeito este campo é chamado de perceptivo: campo perceptivo ou nos termos de Merleau-Ponty (1994, p. 95-96): “campo fenomenal”. O campo fenomenal envolve significações visuais, tácteis, olfativas, gustativas, sonoras, motrizes, especiais, temporais e lingüísticas. A percepção é uma conduta vital, pois parte da estrutura de relações entre nosso coração[5] (afeto, sensibilidade, percepção, núcleo ou o centro do sujeito na linguagem de Pascal) está ligada ao nosso corpo e o mundo.
Conhecemos a verdade não só pela razão, mas também pelo coração; é desta última maneira que conhecemos os princípios, e é em vão que o raciocínio, que deles não participa, tenta combatê-los. [...] Sabemos que não sonhamos; por maior que seja a nossa impotência em prová-lo pela razão, essa impotência mostra-nos apenas a fraqueza da nossa razão, mas não a certeza de todos os nossos conhecimentos, como pretendem. Pois o conhecimento dos princípios, como o da existência de espaço, tempo, movimentos, números, é tão firme como nenhum dos que nos proporcionam os nossos raciocínios. E sobre esses conhecimentos do coração e do instinto é que a razão deve apoiar-se e basear todo o seu discurso. (O coração sente que há três dimensões no espaço e que os números são infinitos; e a razão demonstra, em seguida, que não há dois números quadrados dos quais um seja o dobro do outro. Os princípios se sentem, as proposições se concluem; e tudo com certeza, embora por vias diferentes.) E é tão inútil e ridículo que a razão peça ao coração provas dos seus princípios primeiros, para concordar com eles, quanto seria ridículo que o coração pedisse à razão um sentimento de todas as proposições que ela demonstra, para recebê-los.
Essa impotência deve, pois, servir apenas para humilhar a razão que quisesse julgar tudo; mas não para combater a nossa certeza, como se apenas a razão fosse capaz de nos instruir. Prouvesse a Deus que, ao contrário, nunca tivéssemos necessidade dela e conhecêssemos todas as coisas por instinto e por sentimento! Mas a natureza recusounos esse bem e só nos deu, ao contrário, muito poucos conhecimentos dessa espécie; todos os outros só podem ser adquiridos pelo raciocínio (PASCAL, 1961, n.º 282).
Compreendemos que o corpo pode simbolizar a existência, é porque a realiza e porque é sua atualidade (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 227). Meu corpo poderá se fechar ao mundo encerrando-me numa vida anônima, mas meu corpo é também aquilo que me abre ao mundo e nele me põe
Dizer que tenho um corpo é então uma maneira de dizer que posso ser visto como um objeto e que procuro ser visto como sujeito, que o outro pode ser meu senhor ou meu escravo, de forma que o pudor e o despudor exprimem a dialética da pluralidade das consciências e que eles têm sim uma significação metafísica (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 231).
Não é tão simples amar (cuidar) uma pessoa porque o que possuímos não é apenas um corpo, mas um corpo animado por uma consciência. Portanto, a “importância atribuída ao corpo, as contradições do amor ligam-se a um drama mais geral que se refere à estrutura metafísica de meu corpo, ao mesmo tempo objeto para o outro e sujeito para mim” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 231).
Esse corpo se desvela/revela como expressão e fala. Merleau-Ponty descrevendo o fenômeno da fala e o ato expresso de significação ultrapassou definitivamente a dicotomia entre o sujeito e o objeto, e afirma que:
A partir do momento em que o homem se serve da linguagem para estabelecer uma relação viva consigo mesmo ou com seus semelhantes, a linguagem não é mais um instrumento, não é mais um meio, ela é uma manifestação, uma revelação do ser íntimo e do elo psíquico que nos une ao mundo e aos semelhantes (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 266).
O corpo não se reduz a uma propriedade do sujeito. Possui totalidade humana. Não é um instrumento do homem. É modo de ser da pessoa. Afirma Merleau-Ponty que o corpo exprime a existência total, não que seja um acompanhamento externo, mas porque realiza-se nele. A esse respeito, Merleau-Ponty lembra que não posso dizer que tenho meu corpo, mas que sou o meu corpo. Assim como não posso dizer que tenho minha alma, mas que sou minha alma. A minha alma é o meu corpo vivo. O corpo diz fenomenologicamente o todo do meu ser. É nele que se manifestam a consciência, o pensamento (cogitatio), a intenção profunda, a liberdade, o projeto de vida, a necessidade e aspiração, o acolhimento e a recusa, a dor e o júbilo, o amor e a crueldade, a suplica e a prepotência. O corpo é palavra somática.
Quando alguém morre pelo outro, ou doa parte de si mesmo, do seu próprio corpo, temos aí uma palavra contundente. A expressão radical da fala é o dar a sua própria vida pelo outro.
Conclusão
Você precisa deixar sua oferta sobre o altar e se reconciliar com o seu irmão. Para tanto você precisa saber quem é o seu próximo para um aperfeiçoamento na celebração.
Jesus estava dizendo que o seu próximo não é simplesmente aquele que você odeia, mas também aquele que odeia você.
Jesus estava dizendo que o seu próximo são todos aqueles que apresentam uma necessidade de qualquer natureza.
Jesus estava dizendo que eu preciso me ver face-a-face ao outro para senti-lo como o outro, vendo-me também como o outro para alguém.
Pois bem, o aperfeiçoamento no celebrar exige uma decisão: agir com o próximo como o Samaritano agiu.
REFERÊNCIASARDUINI, Juvenal. Destinação antropológica. São Paulo: Ed. Paulinas, 1989.
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Nova Tradução na Linguagem de Hoje. Barueri (SP): Sociedade Bíblica do Brasil, 2000.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 7. ed. São Paulo: Ática, 2000.
DUSSEL, Enrique D. Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão. São Paulo: Paulus, 1995.
______. Filosofia da Libertação. Filosofia na América Latina. São Paulo: Edições Loyola /Editora Unimep, 1977. (Coleção: Reflexão Latino Americana).
LÉVINAS, Emmanuel. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Lisboa, Portugal: Instituto Piaget, 1967.
______. Totalidade e Infinito. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1980. (Biblioteca de Filosofia Contemporânea).
______. Ética e Infinito: diálogos com Philippe Nemo. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1982. (Biblioteca de Filosofia Contemporânea).
______. Humanismo do outro homem. Tradução de Pergentino Stefano Pivatto (coord.) et all. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.
______. De Deus que vem a idéia. Tradução de Pergentino Stefano Pivatto (coord.) et all. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
______. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. 2. ed. Tradução de Pergentino Stefano Pivatto (coord.) et all. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
HUSSERL, Edmund. Ideas relativas a uma fenomenologia pura y uma filosofia fenomenologica. 2. ed. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1992. (Sección de Obras de Filosofía).
_____. Meditações cartesianas: introdução à fenomenologia. São Paulo: Madras, 2001.
LYOTARD, Jean-François. A Fenomenologia. São Paulo: Difel, 1967. (Coleção Saber Atual).
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994. – (Coleção Tópicos).
SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada. Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
[1] Bíblia Sagrada, Novo Testamento, Evangelho de Lucas capítulo 10 (página 60) - [25] Um mestre da Lei se levantou e, querendo encontrar alguma prova contra Jesus, perguntou: - Mestre, o que devo fazer para conseguir a vida eterna?
[26] Jesus respondeu: - O que é que as Escrituras Sagradas dizem a respeito disso? E como é que você entende o que elas dizem? [27] O homem respondeu: - “Ame o Senhor, seu Deus, com todo o coração, com toda a alma, com todas as forças e com toda a mente. E ame o seu próximo como você ama a você mesmo”.
[28] – A sua resposta está certa! – disse Jesus. – Faça isso e você viverá.
[29] Porém o mestre da Lei, querendo se desculpar, perguntou: — Mas quem é o meu próximo?
[30] Jesus respondeu assim: - Um homem estava descendo de Jerusalém para Jericó. No caminho alguns ladrões o assaltaram, tiraram a sua roupa, bateram nele e o deixaram quase morto. [31] Acontece que um sacerdote estava descendo por aquele mesmo caminho. Quando viu o homem, tratou de passar pelo outro lado da estrada. [32] Também um levita passou por ali. Olhou e também foi embora pelo outro lado da estrada. [33] Mas um samaritano que estava viajando por aquele caminho chegou até ali. Quando viu o homem, ficou com muita pena dele. [34] Então chegou perto dele, limpou os seus ferimentos com azeite e vinho e em seguida os enfaixou. Depois disso, o samaritano colocou-o no seu próprio animal e o levou para uma pensão, onde cuidou dele. [35] No dia seguinte, entregou duas moedas de prata ao dono da pensão, dizendo: - Tome conta dele. Quando eu passar por aqui na volta, pagarei o que você gastar a mais com ele. [36] Então Jesus perguntou ao mestre da Lei: - Na sua opinião, qual desses três foi o próximo do homem assaltado? [37] Aquele que o socorreu! – respondeu o mestre da Lei. E Jesus disse: - Pois vá e faça a mesma coisa.
[2] “Escória” por pertencer a um povo mestiço, por terem misturado-se com babilônicos e árabes; por ter um outro lugar de adoração com imagens de deuses babilônios e árabes combinando com o culto de Israel. A religiosidade praticada pelos samaritanos crescia e os judeus sentiam repugnância em manter relações sociais e religiosas com os samaritanos. Não permitiam a adoração deles no Templo de Jerusalém.
[3] Bíblia Sagrada, Antigo Testamento, Levítico capítulo 21. verso 1 e seguintes (pág. 83) [1] O SENHOR Deus mandou Moisés dizer o seguinte aos sacerdotes, que são descendentes de Arão: — Que nenhum sacerdote fique impuro por tocar no corpo de um parente morto [grifo nosso], [2] a não ser no caso de parentes chegados, isto é, a mãe, o pai, o filho, a filha, o irmão [3] ou a irmã solteira que more com ele.
[4] Ver item 5.6 Proposições provisórias sobre estática, gênese e generação (p. 134).
[5] Pascal relativiza a certeza puramente racional e matemática: “Conhecemos a verdade, não só pela razão, mas também pelo coração” (PASCAL, 1961, n.º 282). Com o coração, de maneira perceptiva, conhecemos o campo fenomenal que envolve significações visuais, tácteis, olfativas, gustativas, sonoras, motrizes, especiais, temporais e lingüísticas.
Parabéns Professor,é um blog muito interessante, e fica registrada minha gratidão pelo exelente trabalho que vem prestando como educador... sua mensagem na aula magna é extremamente pertinente ao nosso tempo, onde nossa visão do "próximo" anda meio destorcida.
ResponderExcluirobrigado, e que Deus o abençoe.
Um abraço...zuccon...
Qohélet
ResponderExcluir"Névoa de nadas § disse O-que-Sabe §§ névoa de nadas § tudo névoa-nada/ Que proveito § para o homem §§§ De todo o seu afã §§ Fadiga de afazeres § sob o sol/ Geração-que-vai § e geração-que-vem e a terra § durando para sempre/ E o sol desponta § e o sol se põe §§§ E ao mesmo ponto §§ aspira § de onde ele reponta/ Vai § rumo ao sul §§ e volve § rumo ao norte §§ Volve revolve § o vento vai §§ E às voltas revôlto § o vento volta"
Belo estudo! Parabéns pelo blog!