quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Poesia - A Escola de Paulo Freire

A ESCOLA

Escola é...
o lugar onde se faz amigos
não se trata só de prédios, salas, quadros,
programas, horários, conceitos...
Escola é, sobretudo, gente,
gente que trabalha, que estuda,
que se alegra, se conhece, se estima.
O diretor é gente,
O coordenador é gente, o professor é gente,
o aluno é gente,
cada funcionário é gente.
E a escola será cada vez melhor
na medida em que cada um
se comporte como colega, amigo, irmão.
Nada de “ilha cercada de gente por todos os lados”.
Nada de conviver com as pessoas e depois descobrir
que não tem amizade a ninguém
nada de ser como o tijolo que forma a parede,
indiferente, frio, só.
Importante na escola não é só estudar, não é só trabalhar,
é também criar laços de amizade,
é criar ambiente de camaradagem,
é conviver, é se “amarrar nela”!
Ora , é lógico...
numa escola assim vai ser fácil
estudar, trabalhar, crescer,
fazer amigos, educar-se,
ser feliz.


FREIRE, Paulo. A Escola. Poesia. Disponível em: <http://www.paulofreire.org/escola_p.htm>. Acessado em 17 out. 2007.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Desfiles de moda privilegiam modelos brancas

A questão diversidade humana é muito séria. Aceitar o outro como outro passa por caminhos 'incriveis". Leiam o texto abaixo:

Disponível em: . Acessado em 15 ou. 2007.

15/10/2007

Desfiles de moda privilegiam modelos brancas
Uma área na qual as lições sobre a diversidade cromática e racial passaram praticamente desapercebidas foi a moda
Guy Trebay em Nova York

Na época em que os preconceitos raciais eram expressos alegremente, os lápis de cera "cor-de-pele" tinham a cor das pessoas brancas. "Maquiagem invisível" e meias-calças vinham com as tonalidades da pele caucasiana. A decisão dos fabricantes de ignorar amplos segmentos da humanidade não foi contestada durante décadas até que o movimento de defesa dos direitos civis surgiu em cena e os consumidores não brancos começaram a exigir o seu lugar no espectro de cores.

Nicholas Roberts/AFP - 09.set.2007
Modelo veste criação de Diane Von Furstenberg, na Nova York Fashion Week
Atualmente o cenário cultural está repleto de atores, músicos, magnatas da mídia e até um candidato à presidência dos Estados Unidos que fazem parte dos 30% da população norte-americana que não é branca. Mas, uma área na qual as lições sobre a diversidade cromática e racial passaram praticamente desapercebidas foi a moda. Essa realidade nunca esteve mais evidente do que durante o desfile recente das coleções da primavera 2008 em Nova York e na Europa.

Embora as mulheres negras nos Estados Unidos gastem mais de US$ 20 bilhões anualmente com vestuário, segundo estimativas do TargetMarketNews.com, foi difícil perceber qualquer consciência quanto a este fato por parte dos designers que exibiram as suas peças em Nova York, onde há muitos anos não se via tamanha ausência das faces negras nas passarelas.

Dos 101 shows e apresentações anunciados no Sytle.com durante a temporada de desfiles de Nova York, que terminou um mês atrás, mais de um terço não contava com uma única modelo negra, segundo o informativo de moda "Women's Wear Daily". E a maior parte dos outros usou apenas uma ou duas modelos negras. Quando a caravana da moda seguiu para Londres, Paris e Milão, os circuitos mais influentes -como Prada, Jil Sander, Balenciaga, Chloe e Chanel- fizeram com que se tivesse a impressão de que alguém pendurara na entrada um cartaz dizendo: "Modelos negras não precisam se candidatar".

"A situação está pior do que nunca", critica Bethann Hardison, uma ex-modelo que criou uma bem-sucedida agência de modelos na década de 1980, voltada para a promoção da diversidade racial.

Entre as pessoas que ela representou estão Naomi Campbell e Tyson Beckford, o modelo masculino musculoso que rompeu barreiras na década de 1990 ao tornar-se o símbolo inesperado da fantasia country club que é uma campanha Ralph Lauren Polo.

"Atualmente fico desconsolada porque os agentes enviam as garotas para desfilar e ninguém deseja vê-las", afirma Hardison, referindo-se às modelos negras. "E, quando as aceitam, acabam telefonando mais tarde e dizendo: 'Sabe como é, garotas negras fazem muito mais sucesso na Europa". Ou então dizem o contrário, que fazem sucesso nos Estados Unidos, ou ainda algo como, 'Já temos a nossa própria modelo negra'".

"Somente caucasianas"

No mês passado, em Nova York, Hardison participou de um painel de especialistas em moda no Hotel Bryant Park a fim de discutir o tema "A Ausência de Imagem Negra na Moda Atual".

"A área desfiles de moda talvez seja a única indústria na qual existe a liberdade para se referir a uma pessoa pela sua cor e rejeitar o seu trabalho", explica ela. Essa exclusão raramente é sutil. Um agente da firma de modelos Marilyn certa vez contou à revista "Time" que recebeu pedidos de clientes de moda que especificaram sem rodeios: "Somente caucasianas".

Atualmente a mensagem nem sempre é tão contundente, mas não deixa de ser menos clara. Vejamos, por exemplo, o caso de duas jovens modelos, uma branca e uma negra, ambas beldades cativantes no início de suas carreiras. Irina Kulikova, a russa felina de 17 anos, apareceu em nada menos que 24 desfiles em Nova York no mês passado, um sucesso que ela repetiu em Milão, com 14 desfiles, e em Paris, com mais 24. Já Honorine Uwera, uma jovem canadense filha de ruandeses, foi contratada durante a temporada de Nova York para apenas cinco desfiles.

Embora o trabalho de Uwera tenha sido respeitável, não foi suficiente para justificar o custo da sua agência de enviá-la à Europa, onde a maior parte das carreiras das modelos se consolida.

"Nós representamos muitas garotas de diversas etnias", diz Ivan Bart, vice-presidente da IMG Models, que representa diversas modelos altamente bem-sucedidas do momento, entre elas as super-modelos negras Alek Wek, Campbell e Liya Kebede.

"Também temos garotas novas; novatas como Uwera, Quiana Grant e Mimi Roche", acrescenta Bart. "Nós as incluímos nos nossos pacotes de desfiles, as promovemos como qualquer outra garota, mas obtemos a mesma resposta: 'Ela é adorável, mas não é a modelo apropriada para o desfile'".

Embora, na verdade, Roche e Grante, ambas negras, tenham sido vistas em passarelas nas últimas cinco semanas, a realidade é que apenas uma modelo negra trabalhou em algum projeto com a freqüência das suas colegas brancas: Chanel Iman Robinson, 17, que é afro-americana e coreana. Particularmente em Milão e em Paris, a face de Robinson foi com via de regra a única que não era branca em meio a uma multidão de louras da Europa Oriental.

Moda que passou

E não é apenas um punhado de jovens geneticamente privilegiadas que são prejudicadas por tal exclusão. Um número enorme de consumidores obtém as informações sobre moda e identidade a partir das passarelas, juntamente com as indicações a respeito daquilo que, em um determinado momento, a cultura decreta serem os novos contornos de beldade e estilo.

"Anos atrás, as passarelas foram quase dominadas por garotas negras", diz J.Alexander, um juiz do "America's Next Top Model", referindo-se aos maravilhosos desfiles-mosaicos organizados por Hubert de Givenchhy ou Yves Saint Laurent nos anos setenta. "Agora algumas pessoas não têm interesse pela imagem das garotas negras, a menos que estejam trabalhando com um tema de selva e possam fazer com que a modelo use uma saia de palha e diamantes, e empunhe uma lança".

"E algumas pessoas simplesmente não pensam a respeito disso", afirma Diane Von Furstenberg, designer e presidente do Conselho de Designer de Moda dos Estados Unidos. A própria Von Furstenberg sempre contratou modelos de todas as etnias para as suas passarelas (em setembro último ela contratou sete negras, talvez mais do que qualquer outra firma do gênero, com exceção da Baby Phat e da Heatherette). Mas ela é cada vez mais uma exceção à regra não verbalizada da indústria.

"Eu sempre quis fazer isso", diz ela, referindo-se à apresentação de mulheres de cor. "Sou capaz de fazer uma diferença. Todos nós somos. Mas muito do problema tem a ver com educação e falar sobre ele é um importante começo".

A reportem pergunta a ela: "Mas não é estranho que você precise invocar a retórica da inclusão racial em uma época em que Oprah Winfrey é a mais poderosa mulher na mídia, e Barack Obama disputa a presidência?"

"Por que estamos em meio a esse retrocesso?", responde Von Furstenberg com outra pergunta.

Os culpados

Os agentes culpam os designers pela situação atual. Os designers insistem em que os agentes só lhes enviem jovens louras e magras. Os editores das revistas manifestam desgosto pela falta de mulheres negras que tenham aqueles atributos necessários e inexprimíveis para veicular as imagens de uma determinada temporada.

"A atual preferência quando se trata de modelos é pelas "andróides" de traços apagados, cujas aparências não concorrem muito com as roupas", afirma James Scully, um agente com muita experiência, e que se destacou montando os etnicamente diversificados desfiles da Gucci no apogeu da era Tom Ford. "No clima de hoje, é bem mais difícil promover uma modelo negra do que uma branca".

"A gente quer vender a modelo baseado na sua beleza, e não na raça", diz Kyle Hagler, agente da IMG. "No entanto, quando mandando modelos para um cliente e nos baseamos naquilo que chamamos de 'perspectiva de beleza', omitindo aos potenciais clientes qualquer menção à raça, é quase certo que recebamos um telefonema dizendo, 'Vocês não me disseram que ela era negra'".

As razões para isso podem ser óbvias, mas mesmo assim é difícil identificar precisamente o preconceito inconsciente.

"Não estou apontando o dedo e dizendo que as pessoas são racistas", afirma Hardison, que, não obstante, lembra-se de uma recente discussão com uma diretora de criação de uma grande marca de moda: "Ela me disse, 'Tenho que ser honesta com você, quando uma garota caminha, eu simplesmente não vejo cor'. Porém, ela contava com uma única modelo negra, ou, mais provavelmente, nenhuma, no seu desfile".

Hardison retrucou: "Você não vê cor? Será que isso significa que você não deseja ver cor?".

Tradução: UOL

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Misturando as Palavras - uma homenagem.

Eu misturei as palavras de vários amigos[as], pois são mais do que palavras, é o coração de cada um deles[as]. Foram enviadas para mim quando informei sobre a morte de minha mãe. Também é uma homenagem a ELENITA ALVES MACIEL, minha mãe, por uma infinidades de razões!!!! A [con]vivência com ela marcam a sua presença!!!
Viveu 80 anos - 05/10/1926 - 17/04/2007.

Misturando as Palavras
Edson Maciel Junior - 24 de abril de 2007.

Meus sentimentos
Meu conforto
Minhas palavras
Minha falta de palavras
Minhas lembranças
Minha luz
Minha esperança
Minhas saudades
Minha dor
Meu despreparo
Meu abraço
Meu desejo
Minha vida
Minha gratidão
Minha presença
Meu toque
Meu amor
Minha miseri[córdia]
Do coração.

É difícil saber o que dizer,
As palavras faltam mesmo.
Quando eu sinto a dor,
Quando percebo
Imagino
A dor do outro.
O que tenho são os ombros,
Coração,
ouvidos,
e sentidos
de quem lembra da dor da perda,
Saudade de alguém
Que já se foi.
A saudade nunca passa,
Mas a esperança do reencontro,
Boas lembranças,
São bem mais fortes.
Sinto um abraço fraterno,
No sentido mais sublime que possa haver,
Coloco a minha cabeça,
Se precisar, no ombro,
Falo ao seu ouvido,
Os seus dedos podem me tocar
Quando a saudade no peito apertar.
Sou finito infinito
Lembrar-me-ei sempre dos momentos,
Compartilhados.
Momentos finitos infinitos que iluminam
A minha e a sua jornada.
Imagino
Acredito
Que consiga [con]viver
Ser
Consolado,
Confortado,
Iluminado,
Com essa saudade.

sábado, 10 de março de 2007

Entendendo, um pouco o fundamentalismo

Para ajudar na introdução à compreensão dos estudantes de teologia sobre o fundamentalismo uso as idéias de três artigos do “O Jornal Batista On Line”. Não tive o cuidado de anotar o dia do acesso e a página do jornal “on line” não armazena e não permite acesso a arquivos anteriores. Poderemos achar os textos usados em arquivos do jornal impresso. Os artigos são de Oliveira[1] Fundamentação e fundamentalismo, parte II; Novaes[2] Palavras Possíveis: Fundamentalismo: Em nome de Deus (final) e Lima[3] Fundamentalismo: realmente a melhor opção? E na conclusão encerro com uma parábola de Rubem Alves que destaca a prepotência existente nas várias áreas do saber.

A partir desses três artigos, usando em sua maior parte as idéias desses autores e aqui e acolá acrescentando alguns comentários quero introduzi-los nesse tema atual na Igreja evangélica brasileira. Quero ainda lembrar que é legitimo adotar idéias fundamentalistas. O que não é legitimo é pensar que esta é a única forma de entender a espiritualidade, a fé cristã e a Bíblia e que todas as outras são erradas, heréticas e nocivas a fé. O fundamentalismo também é nocivo a fé como vamos demonstrar abaixo. Entretanto, todos deverão ter uma coisa em comum, que é a lealdade aos valores do Reino de Deus. O que devem evitar é o sacramento de suas ideologias.

Inicio o texto com Oliveira em seu artigo que destaca a necessidade de aprofundamento em nosso fazer teológico, ele afirma que “a boa fundamentação das teses que abraçamos é uma postura exigida em todos os círculos de construção do conhecimento, não devendo ser diferente na formulação de pensamentos ou doutrinas bíblico-cristãs”.

Para Oliveira o que “diferencia fundamentalismo dos que buscam fundamentação sólida para seus argumentos é a postura frente às proposições conceituais. Fundamentalistas absolutizam - idolatram - a tal ponto suas definições doutrinárias que são incapazes de aceitar a existência de posicionamentos divergentes, sem combater ferozmente, tanto tais conceitos quanto aqueles que os formulam”.

Oliveira traz para o seu dialogo com o leitor um trecho de Alves (2004)[4], que diz: o fundamentalismo protestante teria surgido da necessidade de se contestar a crença de que somente a Igreja Católica seria verdadeira por estar ligada, por uma linha histórica, até as igrejas apostólicas. A produção de Confissões de Fé foi a forma encontrada para provar que o vínculo das igrejas evangélicas com as igrejas apostólicas seria seus compromissos com a essência da fé descrita nos textos bíblicos. Tal busca pela essência teria virado uma obsessão, surgindo, então, a idéia da reta doutrina e fé (ortodoxia) e da adesão doutrinária como necessária à salvação, fato que, na prática, torna a fé na graça de Deus insuficiente. Daí a necessidade que o mundo fundamentalista tem de ser fixo, estável, dominado por idéias e não por sentimentos. A fé em Cristo não está fundamentada em doutrinas, mas numa relação de amor para com Deus e para com o próximo (Veja a Parábola do Samaritano e Tiago).

Continua Oliveira, enquanto fundamentação é uma expressão de natureza epistemológica, fundamentalismo é um termo de natureza predominantemente política, com significado amplo e profundo, passível de aplicação a todos os campos cujos adeptos se sentem os únicos portadores da 'única verdade' conceitual existente. Podemos encontrar fundamentalistas na religião, nas artes, na literatura, na economia, na política, na educação e assim por diante. Por isso, seria reducionismo classificar alguém como fundamentalista simplesmente porque crê num Deus que se revela como criador ou como salvador, em Jesus ou como consolador, no Espírito Santo; ou porque fundamenta suas doutrinas de fé a partir da Bíblia ou adota posições conservadoras. Arrisco dizer, inclusive, que muitos daqueles que são membros de igrejas cuja razão social inclui o termo fundamentalista, não são, a rigor, fundamentalistas pois o que querem, de fato, é viver em paz com Deus e com seus semelhantes e não agir como políticos da religião ou como fanáticos por disputas doutrinárias. Seria injusto se não arriscasse dizer que alguns que se apresentam como progressistas, liberais ou modernos também podem apresentar traços fundamentalistas. Fundamentalismo é, acima de tudo, uma postura política permanentemente extremista, radical. Para fazer prevalecer seus pontos-de-vista, seus seguidores são capazes não só de denegrir a imagem dos que pensam diferente, matando-os socialmente (inclusive para a vida denominacional), mas também de caçá-los como bruxas para lançá-los, física e espiritualmente no "mármore do inferno". Para eles, os que tentam compreender a realidade usando lentes diferentes das suas são a própria encarnação do demônio. Nisso a história comprova que os Protestantes Fundamentalistas conseguiram se igualar aos Católicos Medievais”.

Eu não uso a expressão “católicos medievais” mas, sim, digo, que os protestantes fundamentalistas conseguem se igualar aos cristãos que viviam na Idade Média. Tais pessoas fazem parte de nossa história e contribuíram para a formação de nossa cultura religiosa, assim como seus modos de ser são próprios do ser humano. O agir de forma fundamentalista é uma pratica própria da humanidade com as devidas características do seu tempo histórico.

Enquanto buscar fundamentação – para monografias, dissertações ou teses, ou até mesmos seus estudos você apresenta onde é convidado para falar, ou onde você escreve – é uma postura desejável e necessária. Já a postura fundamentalista é nociva pois, ela

"eleva algo finito e transitório a uma validez infinita e eterna. Neste sentido o fundamentalismo tem traços demoníacos. Ele destrói a humilde honestidade da busca pela verdade, divide a consciência de seus seguidores que refletem e os torna fanáticos. Isto porque são forçados a suprimir elementos da verdade dos quais eles estão veladamente conscientes" (TILLICH apud OLIVEIRA, s/d)

O segundo texto que utilizo nesta empreitada é de Novaes, a ultima parte de seus escritos no “O Jornal Batista”. Para Novais o fundamentalismo é mais ideologia do que teologia. Originou-se, na verdade, em oposição à teologia liberal européia que, hipoteticamente, ameaçava os alicerces da civilização cristã. Porém, embora assumindo uma fachada de resistência aos postulados filosóficos, sociais e científicos como determinantes da hermenêutica bíblica, os defensores do conservadorismo fundamentalista acabaram lançando mão de outros pressupostos ideológicos e filosóficos, como o senso comum escocês.

O senso comum escocês? O que é isso? Como professor de História do Cristianismo, Novaes lança mão dos seus estudos e nos apresenta Thomas Reid (1710-1796), um dos baluartes do Scottish Sense Realism, que afirmava que há “uma verdade universal em todos os tempos e lugares, não mutável nem adaptável a quaisquer circunstâncias. Essa verdade universal pode ser transmitida às pessoas em geral através da linguagem objetiva - seu instrumento de transmissão fiel e inquestionável. Essa verdade transmitida pela linguagem é armazenada e preservada por meio de elementos de memória e registro”.

Como Novais compreende o parágrafo acima: uma aplicação muito simples desses aspectos da filosofia do senso comum à teologia fundamentalista seria a seguinte: a verdade revelada por Deus é repassada à sociedade através da linguagem humana registrada na Bíblia. O texto bíblico representa, então, a memória dessa verdade revelada. O único recurso para evitar que a verdade se perca ou seja deturpada é a interpretação literal das Escrituras. Por isso, a teoria da inspiração verbal (ou do ditado) e a hermenêutica biblicista-literalista formam a essência do fundamentalismo. A escatologia milenarista dos fundamentalistas nada mais é do que uma conseqüência natural da visão literalista.

Como conseqüência desta forma de pensar surgem alguns preconceitos:

1. Contra os estudos científicos, a estagnação intelectual – uma vez que o horizonte do conhecimento já está fechado e nada novo pode ser acrescentado;

2. Contra o desenvolvimento teológico – considerando-se que o dogmatismo rígido do fundamentalismo não permite a reflexão ou a tentativa de tornar a fé compreensível ao pensamento moderno;

3. A ética dualista – em que se cria várias dicotomias entre alma e corpo, igreja e mundo, fé e razão, quantidade-qualidade entre outras;

4. A ausência de qualquer abertura para as questões sócio-culturais – já que a preocupação central dos fundamentalistas prende-se ao supra-histórico e ao sobrenatural, a redução da missão da igreja às atividades evangelísticas entenda-se atividade evangelística aqui como aplicação de métodos que se perpetuam sem acomodações ou flexibilizações desde os tempos do avivamentalismo-conversionista norte-americano (os camp-meetings);

5. A sacralização de práticas religiosas e comportamentais que se ligam mais à tradição dogmática do que propriamente aos ensinos bíblicos (e, muitas vezes, não resistem à exegese mais superficial);

6. O sectarismo incapaz de dialogar com posturas divergentes;

7. A intolerância que não considera como cristianismo autêntico outras expressões de fé desvinculadas de uma ótica denominacionalista rasteira e afunilada.

No Brasil Antônio G. Mendonça é um estudioso renomado sobre o protestantismo e suas vertentes. A partir dos estudos de Mendonça podemos compreender que o "o fundamentalismo não se difunde eclesiasticamente (...), mas ideologicamente, através de instituições pára-eclesiásticas, preponderantemente, estrangeiras. As raras nacionais são arremedos que navegam na mesma esteira".

Maciel Junior (2002) afirma que muitas expressões denominacionais no Brasil estão muito afastada de um debate doutrinário e ideológico no universo acadêmico e se utilizam do fundamentalismo por ser a via menos trabalhosa e a mais inculcada na mentalidade evangélica brasileira:

Hoje, o pentecostalismo clássico não difere tanto do protestantismo, a não ser na sua insistência na repetição da experiência do Pentecostes que o protestantismo recusa. O pentecostalismo posterior, cuja explosão e expansão se deu nos anos 50, enfatizou a cura divina, o que o afastou ainda mais do protestantismo. Os posteriores movimentos, que têm recebido o nome genérico de neopentecostalismo, representam uma ruptura final com o protestantismo. Qualquer observador atento e conhecedor do protestantismo sabe que nesses movimentos a Bíblia foi relegada a espaço secundário, o “livre exame” cedeu lugar ao uso mágico da mesma e assim por diante. Surgiram práticas mágicas, objetos com poderes especializados, correntes espirituais e mesmo alguns deuses estranhos ao cristianismo como, por exemplo, o “deus da corda”, ou do “nó”, especializado em amarrar ou neutralizar os poderes malignos (os demônios).

Novais afirma que por “falta de um protestantismo com uma identidade cultural mais definida deixa-nos à mercê dos desequilíbrios ideológicos do protestantismo norte-americano, com reflexos nem sempre muito nítidos, mas inevitavelmente prejudiciais à saúde e ao bem-estar da reflexão teológica no Brasil”.

O ultimo de minha empreitada é o texto de Lima. O autor faz uma critica a um artigo publicado no “O Jornal Batista” que defende o fundamentalismo. O titulo era "Fundamentalista, sim. Por que não”? na edição número trinta e sete do jornal. Qual era a argumentação do artigo? O autor afirmava que as doutrinas dos Batistas são fundamentalistas, ainda que Jesus era fundamentalista, e que Paulo também era fundamentalista. E a conclusão do artigo foi:

“não há outra opção para o crente fiel senão tornar-se fundamentalista”.

"Acho que está muito claro que é melhor ser um fundamentalista do que edificar sobre a areia".

“Ou se adota a teologia liberal, ou então o fundamentalismo. Só existem estas duas opções? O fundamentalismo é realmente a melhor opção”?

Lima questiona tal artigo apresentando os temas abaixo relacionados dos quais destaco as criticas feitas por ele aos fundamentalistas trazendo um outro olhar, fazendo uma outra analise:

1. A recusa a um diálogo com a crítica bíblica

Rejeitaram a crítica bíblica e fechando-se a um diálogo com ela. Entretanto, os pressupostos e afirmações da alta crítica alemã não devem ser confundidos com a crítica bíblica como um todo. A alta crítica alemã foi (ou é) apenas uma escola ou posicionamento dentro da crítica bíblica. A crítica bíblica é valioso instrumento para nos auxiliar no estudo da Bíblia, fornecendo informações relevantes para sua correta compreensão. Se aceitamos as Escrituras, não precisamos temer sua análise crítica. Além disso, se queremos oferecer respostas consistentes aos questionamentos levantados pela crítica bíblica, devemos estar abertos à investigação e ao diálogo.

A leitura fundamentalista da Bíblia é um entendimento literalista do texto bíblico, que considera sua forma final como a expressão palavra por palavra das Escrituras e a vê como clara, simples e sem ambigüidade. Normalmente recusa-se a usar o método histórico-crítico ou qualquer outro suposto método científico de interpretação e não leva em conta as origens históricas da Bíblia, nem o desenvolvimento de seu texto ou suas diversas formas literárias.

2. O adotar um conceito insustentável de inspiração bíblica

Adotam a concepção do ditado verbal. Segundo esta concepção, Deus teria ditado cada palavra de sua revelação aos escritores da Bíblia, que as escreveram exatamente como as receberam, sem qualquer interferência pessoal. Tal concepção gera alguns problemas. A Bíblia, em sua totalidade, não se apresenta assim. Segundo Lima

o apóstolo Paulo fala da inspiração das Escrituras, mas não afirma que elas foram ditadas por Deus, palavra por palavra (2 Timóteo 3. 16). Neste texto, a palavra traduzida por "divinamente inspirada" tem o significado de produzida pelo Espírito de Deus. O apóstolo Pedro ensinou que os profetas falaram movidos pelo Espírito Santo (2 Pedro 1.21), ou seja, foram impulsionados e dirigidos por ele. Mas este texto não afirma que ele ditou palavra por palavra o que os profetas deveriam dizer ou escrever. Portanto, não há base bíblica conclusiva para esta concepção”.

Outro problema está relacionado a inspiração bíblica no que diz respeito à diversidade de estilos de redação presentes na Bíblia. Se fosse verdadeira a concepção de que Deus ditou toda a Bíblia, palavra por palavra, seu estilo de redação seria o mesmo em todos os seus livros. Mas isto não ocorre, e a causa é a diversidade de escritores, que têm do Pai de Todas as Letras liberdade quanto às diversas formas literárias.

Outro problema está em não levar em conta o caráter histórico da revelação bíblica, a leitura fundamentalista não admite que a Palavra de Deus inspirada tenha sido expressa na linguagem de autores humanos que podem ter tido capacidades extraordinárias ou limitadas e escreveram em diversas formas literárias. Considera o autor humano mero escriba que registrou a mensagem divina.

Ignora os problemas apresentados pelos textos hebraicos, aramaicos e gregos originais e muitas vezes se prende a determinada tradução ou edição da Bíblia.

Na interpretação dos Evangelhos, confunde o estágio final da tradição evangélica (o que os evangelistas escreveram, c. 65-95 d.C.) com seu estágio inicial (o que Jesus fez e disse, c. 1-33 d.C.).

Ignora a maneira como as comunidades cristãs primitivas entenderam o impacto produzido por Jesus e sua mensagem. Por isso, esta leitura literalista da Bíblia tem pouco a ver com o sentido literal genuíno da Escritura.

Dá indevida ênfase à inerrância de detalhes, em especial os que supostamente dizem respeito a acontecimentos históricos ou questões científicas.

Ligado a esta leitura literalista está o não entendimento do princípio Scriptura sola, "somente a Escritura", importante no Protestantismo. Assim, a posição fundamentalista tende a desprezar a Tradição genuína da Biblia que se desenvolveu guiada pelo Espírito Santo e construída dentro da comunidade de fé cristã.

3. Identifica os valores da tradição norte-americana com os valores cristãos.

Idealizaram uma tradição cultural e social norte-americana, cujos valores e práticas lhes são próprios daquela cultura, passam a ser identificados como os próprios valores cristãos. Tal idealização foi grandemente influenciada pela cultura norte-americana das décadas de 1920 a 1970. Assim, os fundamentalistas interpretam e constroem os valores cristãos conforme esta tradição norte-americana por eles idealizada.

Maciel Junior (2002) demonstra como esta identificação se dá, usando como um dos exemplos a década de 70. Nessa década cresceu nas igrejas evangélicas os efeitos da repressão militar da década anterior e, paralelamente, escancararam-se as portas e janelas para as entidades para-eclesiásticas da ultradireita religiosa norte-americana. E cita a maneira como Hap Brooks, religioso estadunidense se referia aos golpes militares na América Latina:

Em outro trecho: “Um dois patrocinadores da campanha de orações, o pastor Hap Brooks, da Florida, aclamou o golpe como ‘o maior milagre do século vinte, o esperado no céu antes que fosse operado na Terra. E após a queda de Ríos Montt em 8 de agosto de 1983 não prejudicou a ampla influência ideológica dos evangelistas da Guatemala e continuaram ser usados ideologicamente pelos grupos dirigentes do país... “Então os tais evangelistas retornaram simplesmente à sua posição ‘apolítica’ tradicional...” “Já na Nicarágua sandinista, onde os líderes evangélicos conservadores declaravam que a tarefa de todo o cristão era trazer o país para mais perto de Cristo”. Isto significava que a revolução estava sob o poder do Diabo. Rejeitavam os Comitês de Defesa Sandinista (CDS) e criaram programas sociais nas áreas rurais para competir com organizações administradas pelos sandinistas. Para Reagan da ‘importância estratégica’ da América Central, isto só pode significar uma coisa: que a direita religiosa sempre se oporá aos esforços dos cristãos centro-americanos de encarar a sua fé como um mandado de libertação” (MACIEL JUNIOR, 2002 apud HUNTINGTON, 1984)

Continua Maciel Junior (2002) “isto aconteceu durante o ano em que o país teve o privilégio de ficar sob a liderança do primeiro presidente (o grifo é meu: era ditador militar) evangélico do continente, Efrain Rios Montt, membro da Igreja Pentecostal Verbo”.

4. Tende a desprezar a razão em favor de uma fé cega

No início do movimento, lançaram 12 volumes intitulados "Os Fundamentos". O conteúdo desta obra é marcadamente apologético, desenvolvendo argumentação e conteúdo de sua lógica. Contudo, algum tempo depois os fundamentalistas foram deixando de lado o apelo à razão. Passaram a defender o ponto de vista de que as verdades fundamentais da fé cristã devem ser aceitas totalmente pela fé, prescindindo mesmo da razão.

Considerar questionamentos, ou cultivar erudição teológica tornaram-se sinais de incredulidade. Não descarta o uso da razão por aquele que crê. O apóstolo Paulo recomendou a Timóteo que fosse um estudioso (1 Timóteo 4.13). É importante ressaltar, também, que o homem escolhido por Deus para ser o apóstolo dos gentios era um dos mais cultos de sua época, sendo notória a sua erudição (Atos 26.24). E isto lhe foi útil na obra missionária, inclusive ao evangelizar os atenienses, quando citou poetas gregos em sua pregação no Areópago (Atos 17. 28).

O conhecimento de Deus por meio de sua revelação não descarta o uso de nossa razão, pois o próprio ato de entender a revelação de Deus consiste em um processo racional. Não podemos, portanto, separar fé de razão, como se fossem duas coisas antagônicas ou uma dicotomia. Uma fé destituída de razão descamba facilmente para o fanatismo.

(In)Conclusão

Entendemos por “fundamentalismo” toda e qualquer doutrina ou prática social que busca seguir determinados “fundamentos” tradicionais, geralmente baseados em algum livro sagrado ou práticas costumeiras, consuetudinárias. Todo o fundamentalismo tende a uma absolutização do “eu”, do “ego” em detrimento do “outro”. Deixa-se de perceber que, humano, o “outro” é em verdade um “outro eu” e termina-se por não reconhecer a validade do ponto de vista do outro. Este é um dos maiores problemas da atual globalização.

Na globalização romana todo o mundo não-romano era considerado “bárbaro”, portanto indigno de considerações e diálogo. Deveriam os “bárbaros” ser globalizados (embora, claro não se utilizassem estas expressões). Na globalização portuguesa sobre o que hoje chamamos de “Brasil” deveriam os chamados de “índios” e ainda os negros trazidos em cadeias por sobre o mar, ser globalizados.

Os fundamentalistas acertaram em querer defender os fundamentos da fé cristã. Mas seu jeito de apresentar essas verdades fundamenta-se em uma ideologia que não é bíblica, apesar das alegações de seus representantes, pois exige adesão firme a rígidas atitudes doutrinárias e uma leitura sem questionamento ou críticas dos conteúdos da religião. Seu apelo é ao "senso comum". De maneira intolerante, exerce uma influência nas pessoas que não permite o crescimento da comunidade de fé e da pessoa humana permitindo comportamentos extremistas. Um exemplo são pessoas que para buscarem uma “santificação” ou “consagração” chegam a cortar o próprio pênis[5].

Por isso temos alertado dos perigos que o fundamentalismo representa. Seria, o fundamentalismo, fruto de insegurança emocional? De necessidade psicológica de poder, de dominação? De infantilidade espiritual? Seria manifestação de orgulho inveterado? De oportunismo político? De ignorância intelectual? A resposta a essas questões exigem aprofundamento e conhecimentos específicos. Por isso, deixo-as no ar.

Somando a tudo isto vivemos num mundo em que o fundamentalismo de mercado impõe seus valores a todos os povos. “Tecnicamente” se possível. À bala se necessário.

O fundamentalismo de mercado apresenta total devoção ao comércio e preocupação social tendente a zero.

Em todas as formas de fundamentalismo ocorre uma busca de absolutização do “eu”, do “ego”. Diz-se “eu tenho razão”, “sou dono da verdade”, você, se pensa diferente de mim, não tem razão. Tem de ser “globalizado”!

A marca da globalização de cima para baixo promovida pelos norte-americanos é o não reconhecimento do outro.

Encerro com uma história engraçada de Alves (2006), que nos ajuda a refletir sobre o nosso caminho metodológico. Muitos pensam que o que dizem sobre Deus tem conseqüências cósmicas (mais próximos da verdade estariam se se contentassem com as conseqüências cômicas)...

O que me faz lembrar a estória de um galo que acordava bem cedo, todas as manhãs, ainda escuro, e anunciava solene aos seus companheiros, bichos de galinheiro: - “Vou cantar para fazer o sol nascer...”

E se empoleirava no alto do telhado, olhava para o horizonte, e ordenava, categórico: '-Co-co-ri-co-có...'

Dali a pouco a bola vermelha mostrava o seu primeiro pedaço e o galo comentava, confiante: “- Eu não disse?...”

E os bichos ficavam boquiabertos e respeitosos ante poder tão extraordinário conferido ao galo: cantar pra fazer o sol nascer. E nem havia sombra alguma de dúvida, porque tinha sido sempre assim, com o galo-pai, com o galo-avô...

Aconteceu, entretanto, que o galo certo dia perdeu a hora, e quando ele acordou o sol já estava lá, brilhando no meio do céu...

Há teólogos que se parecem com o galo. Acham que, se não cantarem direito, o sol não nasce: como se Deus fosse afetado por suas palavras. E até estabelecem inquisições para perseguir galos de canto diferente e condenam outros a fechar o bico, sob pena de excomunhões. Claro que fazem isto por se levarem muito a sério e por pensarem que Deus muda de idéia ou muda de ser ao sabor das coisas que nós pensamos e dizemos. O que é, para mim, a manifestação máxima de loucura, delírio maníaco levado ao extremo, este de atribuir onipotência às palavras que dizemos.

Teólogos são, freqüentemente, galos que discutem qual a partitura certa: que canto cantar para que o sol levante? Neste sentido, conservadores fundamentalistas não se distinguem em nada dos teólogos científicos que se valem de métodos críticos de investigação. Todos estão de acordo em que existe uma partitura original, revelada, autoritativa, e que a tarefa da teologia é tocar sem desafinar. As brigas teológicas são discussões sobre se a tonalidade é maior ou menor, ou se o sinal é bemol ou sustenido. Uns querem que seja tocada com orquestra de câmara e outros afirmam que o certo é tocar com banda. Qualquer que seja a posição, todos afirmam que existe um único jeito de tocar a música. Usando palavras de Lutero, “unum simplicem solidum et constantem sensum” - o sentido uno, puro, sólido e constante. Desafinações, variações ou modificações trazem consigo o perigo de alguma grave conseqüência.

Eu penso, ao contrário, que não é nada disso.

O sol nasce sempre, do mesmo jeito, com galo ou sem galo.

Assim, o galo pode dormir à noite, sem a angústia de ter de acordar na hora certa. Se dormir demais, o sol vai se levantar do mesmo jeito. O que, sem dúvida, diminui seu senso de importância, mas tem a compensação do sono tranqüilo, o que não é de se desprezar.

Observação: tal se dá em outras áreas do saber.

Mais do que isso: o galo pode inventar outros cantos, sabendo que o sol não vai se zangar e vai nascer como sempre, no mesmo lugar.

Traduzido em jargão teológico isto significa “graça”: a bondade de Deus continua a mesma, sempre, independente de nossas afinações ou desafinações. Ele nem nasce melhor quando estamos afinados e nem nasce pior quando estamos desafinados... Temos, portanto, a liberdade de fazer o que quiser... Eu não suportaria pensar que o meu pensamento é tão poderoso que, caso eu pense errado, Deus vai ficar torto.


A partitura tem o nome de teologia, mas quem dança somos nós...


Observação: Bonhoeffer – “a igreja baseia-se na revelação do Coração de Deus”.


Para você conhecer mais sobre o assunto:


ALVES, Rubem. Dogmatismo e Tolerância. São Paulo, Loyola, 2004.


______. Sobre deuses e caquis. Disponível em: <http://revistamissoes.org.br/animacao/textos/25/index.php>. Acesso em 02 abril 2006.

DREHER, Martin. Para entender fundamentalismo. São Leopoldo: Sinodal, 2006.

ELWELL, Walter A. Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã. Trad. Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, 1988. 3 v.

GOUVÊA, Ricardo Quadros. Piedade Pervertida. São Paulo: Grapho Editores, 2006.


HUNTINGTON, Débora. Os “profetas” do anticomunismo na América Central. Cadernos do terceiro mundo. Agosto de 1984. Ano VII, n.º 69. Tricontinental editora, pág. 87 a 95


LIMA, Dalton de Souza. Fundamentalismo: realmente a melhor opção? IN: O Jornal Batista On Line. Caderno Debate de O Jornal Batista. http://www.batistas.com/ojb/ >s/d do acesso.


MACIEL JUNIOR, Edson. A Cultura Popular Brasileira e o Pentecostalismo no Brasil. 2002. 105 f. Monografia (Filosofia da Religião) Pós-Graduação Latus Senso do Departamento de Filosofia, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2002.


MENDONÇA, Antônio Gouvêa. Protestantes, Pentecostais e Ecumênicos. O campo religioso e seus personagens. São Bernardo do Campo, SP, UMESP, 1997.


NOVAES, Carlos Cesar P. Palavras Possíveis: Fundamentalismo: Em nome de Deus (final) IN: O Jornal Batista On Line. Caderno Debate de O Jornal Batista. http://www.batistas.com/ojb/ >s/d do acesso.


OLIVEIRA, Edvar Gimenes de. Examinai Tudo: Fundamentação e fundamentalismo (Parte II) IN: O Jornal Batista On Line. Caderno Debate de O Jornal Batista. http://www.batistas.com/ojb/ >s/d do acesso.


TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. 5ª Edição Revista São Leopoldo, RS: Editora Sinodal. 2004


VIERTEL, Weldon E. A interpretação da Bíblia. Trad. Carlos E. Godinho. 2ª ed. Rio de Janeiro, JUERP, 1979.



[1] Pastor da Igreja Batista Emanuel em Boa Viagem, Recife, PE - E-mail: edvargimenes@uol.com.br

[2] Pastor da IB de Barão da Taquara, Rio de Janeiro, RJ, e professor da área histórica no STBSB. Correio eletrônico: ibbtpastor@domain.com.br

[3] Professor do Seminário Teológico Batista de Niterói e pastor da IB em Icaraí, Niterói, RJ.

[4] O autor não cita as páginas. Atualmente o livro é editado pela Edições Loyola, 2004.

[5] O autor conheceu um caso em Rondônia de uma pessoa que por causa de uma mensagem religiosa, ao chegar em casa cortou o próprio pênis. Não atribuo a mensagem em si, mas ao fundamentalismo que é vivido pelas denominações no Brasil.

UMA PARÁBOLA: a relação intersubjetiva com Outro


Texto da Aula Magna do CETEBES (Vitória - ES) em 05 de março de 2007.

A parábola do Samaritano[1] é testemunho de “um passado imemorial” (LÉVINAS, 1993, p. 97) ou de uma tradição e de uma experiência. Na parábola percebemos a experiência do vivido e [con]vivido, o mundo das [des]crenças, dos [anti]valores, o mundo da [con]vivência inter[in]dependente, ou seja, o mundo que é mundo com sua submissão às injunções e necessidades dos fatos.

Usando a parábola do Samaritano como metáfora e testemunho posso entender e perceber o “estar com outrem face a face” de Lévinas (2005, p. 32). Nessa parábola o Samaritano é a escória[2], é tratado com muitos invólucros, o “não-ser” (DUSSEL, 1977), mas que viu o “rosto do outro” (LEVINAS, 2005, p. 32), o sujeito concreto ou sujeito encarnado (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 85). O Samaritano adota a atitude de sentir-o-outro-dentro-de-si. Vamos lidar com estes conceitos a partir das Escrituras Sagradas.

Certa vez um professor da Lei judaica se levantou e, querendo encontrar alguma prova contra Jesus que era um mestre de quem ele não gostava muito, perguntou: — Mestre, o que devo fazer para conseguir a vida eterna? Os professores da Lei tinham estas questões relacionadas à vida espiritual, as questões metafísicas.

Esta história aconteceu nas terras da Palestina há muitos milênios atrás. Então o mestre Jesus respondeu: — O que é que os nossos textos sagrados dizem a respeito disso? E como é que você entende o que eles dizem? Como você percebe toda esta vivência? Como você é mediado pelas suas experiências (você mesmo), pelo outro, pelas suas leituras e seus relacionamentos (o mundo)?

O professor da lei respondeu: — “Ame o Senhor, seu Deus, com todo o coração, com toda a alma, com todas as forças e com toda a mente. E ame o seu próximo como você ama a você mesmo”. — A sua resposta está certa! — disse o mestre Jesus. — Faça isso e você viverá. Veja que o mestre não qualificou a vida de “eterna”. Apenas vida.

Porém o professor da Lei querendo complicar a Jesus (o outro), perguntou: — Mas quem é o meu próximo? Uma outra pergunta seria: “sou eu um próximo”? Como ser sendo, sou para outros que no mundo estão e são? O professor da Lei queria buscar limites na sua postura de amar. Então o seu próximo seria outro da mesma classe que ele, outro igual a ele. Ele vê o outro a partir de si mesmo.

Como professor e mestre da lei dado às coisas da religião, dos rituais, do templo era extremamente exclusivista; as regras religiosas estavam acima das vivências humanitárias.

Então Jesus, o mestre continuou assim: – Um homem estava descendo de Jerusalém para Jericó. No caminho alguns ladrões o assaltaram, tiraram a sua roupa, bateram nele e o deixaram quase morto.

Os homens envolvidos na história são claramente judeus. Os professores do diálogo são judeus e o herói da história é um judeu que se misturou com outros povos por isto passou a ser discriminado, rotulado e posto num invólucro – um samaritano. Os samaritanos e os judeus possuíam, quando Jesus usou esse conto, quatro séculos de brigas e discriminações.


1 Os Ladrões

Surgem os ladrões que no relacionamento com o outro agem olhando o outro como alguém que possui algo que pode ser tomado. É assim que eles [con]viviam: o que é teu é meu e eu tomarei. O outro não é um próximo a ser amado, ou a ser sentido dentro, é um meio para obter coisas. O que eu posso tirar de uma pessoa com “deficiência” ou uma pessoa com qualquer necessidade? O que posso roubar dela? Se não posso tirar nada então não há nada também a ser feito por ela, não há porque senti-la dentro de mim.

Jesus aponta para uma primeira forma de relacionamento com o outro: o que é teu é meu e eu tomarei.


2. O Sacerdote e o Levita – um testemunho duplo

Voltando à estrada. Um sacerdote (alguém com a mesma formação religiosa e acadêmica de um dos mestres do diálogo) estava descendo por aquele mesmo caminho. Quando viu o homem, tratou de passar pelo outro lado da estrada. Também um levita (com a mesma formação religiosa e acadêmica do sacerdote) passou por ali. Da mesma forma olhou e foi embora pelo outro lado da estrada. Lévinas me faz refletir que passar ao largo” é a “incompreensão que deriva da preguiça ou da frieza com que passamos, indiferentes, um ao lado do outro. Rolando afirma que:

A oposição implica, de fato, numa resistência. Não porque o outro se apresente como força ou hostilidade: pode ser inerme, indefeso, nu, mas na sua nudez é resistência, enquanto oposição que não se deixa absorver, reconduzir à unidade. Trata-se de uma resistência ética e não física. Por isso, o tirano foge do face-a-face, da dimensão mais original que é a ética (ROLANDO, acesso 20 out. 2005).

Nos textos sagrados havia o seguinte ensino que o sacerdote e o levita sabiam: “Somente se tocassem num cadáver é que os fariam imundo devido as leis cerimoniais[3]. Só teriam absoluta certeza de conservar sua pureza cerimonial se deixassem o homem como estava. Mas também poderiam ter certeza de que não omitiriam o cuidado a uma pessoa com necessidades somente pelo simples fato de ir até ele. Mas, assim não fizeram.

Foram para o outro lado da estrada e deliberadamente evitaram qualquer possibilidade de se verem face-a-face. Deixaram-no onde estava, no seu sofrimento e na sua necessidade. É o encontro de corpos em forma de recusa que afasta as existências e cava o hiato interpessoal. Sartre até os últimos anos antes de sua morte dizia que “o ser-para-o-outro é impossível” (SARTRE, 1997, p. 289 ss), mas em outra obra Sartre abre-se à esperança de um mundo não definitivamente fechado: “o outro é indispensável à minha existência tanto quanto, aliás, ao conhecimento que tenho de mim mesmo” (SARTRE, 1978, p. 16) e Hegel diz: “cada consciência procura a morte do outro” (ARDUINI, 1989, p. 21). É no encontro vivo entre as pessoas, que tem o mesmo sentido que um diálogo das corporalidades, nesse encontro é que se constitui o ser-no-mundo. É através das corporalidades humanas inter-relacionadas que o mundo adquire sentido e se espraia em forma de linguagem. O mesmo dilema pertence aos dois: sacerdote e levita. Dois religiosos, um testemunho duplo, que os professores da lei não sabiam quem era o próximo. É assim que eles [con]viviam – sacerdote e o levita: o que é meu é meu e eu guardarei.

Jesus aponta para uma segunda forma de relacionamento com o outro: o que é meu é meu e eu guardarei.

3 O Samaritano


Um samaritano que estava viajando por aquele caminho chegou até ali. Quando viu o homem ficou com misericórdia (é do reino da afetividade, vem do coração) dele. Então chegou perto dele, limpou os seus ferimentos com azeite e vinho e em seguida os enfaixou. Depois disso, o samaritano colocou-o no seu próprio animal e o levou para uma pensão, onde cuidou dele. Como afirma Lévinas (2005, p. 269) o samaritano faz uma inversão do “em-si”, do “para si” e do “cada um por si” em um eu ético. O samaritano prioriza o “para o outro”. É uma reviravolta radical do outro como meu inferno (Sartre) por sua eleição a uma responsabilidade pelo outro homem irrecusável e incessível. Esse novo giro radical produzir-se-ia no que Lévinas chama de “encontro do rosto de outrem”.

É na relação intersubjetiva (Husserl, 5ª meditação) do eu ao outro, que esse acontecimento (Lévinas) ético, amor e misericórdia, generosidade e obediência, conduz ou eleva acima do ser. “O rosto é o que não se pode matar, ou pelo menos, aquilo cujo sentido consiste em dizer: tu não matarás” (LÉVINAS, 1982, p. 79). É o olhar do outro a impedir qualquer conquista, ou melhor, de acordo com a importante especificação de transcendência e inteligibilidade, o “farás tudo para que o outro viva” (LÉVINAS, 1982, p. 32). Como se o samaritano perguntasse: no rosto do outro há uma presença, uma superioridade, o que posso compreender?

O Tu não matarás é a primeira palavra do rosto. Ora, é uma ordem. Há no aparecer do rosto um mandamento, como se algum senhor me falasse. Apesar de tudo, ao mesmo tempo o rosto de outrem está nu; é o pobre por quem posso tudo e a quem tudo devo. E eu, que sou eu, mas enquanto “primeira pessoa”, sou aquele que encontra processos para responder ao apelo (LÉVINAS, 1982, p. 81).

Então eu digo a Lévinas: sim! No caso do Samaritano, sim! Mas noutros, o encontro com o outro pode acontecer ao contrário, se dá a violência, o ódio, o [pré]conceito, o desprezo, o passar longe, o virar o rosto e o não amar com o mesmo sentimento de Cristo Jesus. Lévinas responde:

Claro. Mas penso que, seja qual for a motivação que explique esta inversão, a análise do rosto [...], com o domínio de outrem e da sua pobreza, com a minha submissão e a minha riqueza, é a primeira. É o pressuposto de todas as relações humanas. [...] Respondo que é o fato da multiplicidade dos homens e a presença do terceiro ao lado de outrem que condicionam as leis e instauram a justiça (LÉVINAS, 1982, p. 81).

O Samaritano via-se diante do único Logos que [pré]existe, que é o próprio mundo, de que ele faz parte, e nenhuma hipótese explicativa é mais clara do que o próprio ato pelo qual ele retoma este mundo inacabado para tentar totalizá-lo e pensá-lo. Quando as pessoas (corporalidades) existentes travam relacionamento, que se forma um universo que constitui como um mundo-da-vida, intersubjetivo, comunitário e solidário. O diálogo corporal mediatiza o intercâmbio mais amplo com o universo cósmico e histórico. O encontro de corpos perfaz a mútua inserção significativa de vidas. É um encontro que perpassa o acolhimento recíproco. Na fala de Jaspers o samaritano é pedagogia existencial (ARDUINI, 1989, p. 21). Mas, você poderá perguntar: mas o outro não é também responsável a meu respeito?


Talvez, mas isso é assunto dele. Um dos temas fundamentais, de que ainda não falamos, [...], é que a relação intersubjetiva é uma relação não-simétrica. Neste sentido, sou responsável por outrem sem esperar a recíproca, ainda que isso me viesse a custar a vida. – A recíproca é assunto dele. Precisamente na medida em que entre outrem e eu a relação não é recíproca é que eu sou sujeição a outrem; e sou sujeito [grifo do autor] essencialmente neste sentido. Sou eu que suporto tudo. Conhece a frase de Dostoievsky: “Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, e eu mais do que os outros”. Não devido a esta ou àquela culpabilidade efetivamente minha, por causa de faltas que tivesse cometido; mas porque sou responsável de uma responsabilidade total, que responde por todos os outros e por tudo o que é dos outros, mesmo pela sua responsabilidade. O eu tem sempre uma responsabilidade a mais do que todos os outros (LÉVINAS, 1982, p, 90-91).

Aqui o mestre Jesus traz a lição do amor verdadeiramente sentido e vivido, que se dá na forma de [re]aprender a ver o amar aos seres humanos. O conhecimento é em todas as suas configurações uma vivência psíquica: é conhecimento do sujeito que conhece.

No dia seguinte, o samaritano entregou duas moedas de prata ao dono da pensão, dizendo: -Tome conta dele. Quando eu passar por aqui na volta, pagarei o que você gastar a mais com ele. Estamos diante outra forma de [con]viver, do homem samaritano: o que é meu é teu também e eu lhe darei.

Jesus aponta para uma terceira forma de relacionamento com o outro: o que é meu é teu também e eu lhe darei.

3.1 O segnificava ser samaritano

O efeito de introduzir um samaritano é devastador. Para aquele professor da lei não havia samaritano que prestasse. Se um samaritano tocasse no corpo de um judeu, mesmo casualmente ou de maneira rápida, o judeu se considerava impuro. Ao chegar em casa passaria por um ritual de purificação. A sombra de um samaritano seria o suficiente para estragar uma comida, tornando-a impura aos olhos de um judeu. Um samaritano seria a última pessoa de quem se poderia esperar misericórdia, alguém que soubesse quem é o próximo. Mas este homem cuidou daquele com necessidades naquele momento. E o seu cuidar só terminou quando colocou o homem num abrigo seguro. Pagou a hospedaria com dois denários por conta, sendo que bastariam 1/12 de um denário, que corresponderiam a um mês de hospedagem. Não foi tudo, quando voltasse pagaria qualquer gasto a mais que o hospede tivesse.

Então o mestre perguntou ao professor da lei: — Na sua opinião, qual desses três foi o próximo do homem assaltado? Qual a relação que vê o próximo como o outro?

— Aquele que o socorreu! — respondeu o professor da lei. E o mestre Jesus conclui: - pois vá e faça a mesma coisa. Faça do que é teu algo que possa ser do outro também.

3.2 A dificuldade de se colocar no lugar do outro


O professor da lei não conseguiu falar a odiada palavra “samaritano”. Observe que ele evitou dizer “foi o samaritano”, preferindo a fórmula longa o que usou de misericórdia para com ele”. Não consegue se ver no lugar do outro. Não tem o outro dentro de si. O estar diante do próximo é o não perguntar. Vê a necessidade e ajuda. Só isso. Nada se opõe ao cuidar. Nem o fato de ser de outro povo, inimigo ou estranho. A única lei que vigora neste campo é a de sentir as necessidades e/ou os limites alheios. O próximo autêntico cuida sem perguntar, nem exigir, sem procurar causa ou recompensa.

3.4 Uma discussão filosófica

O mundo “tem seu horizonte temporal infinito nos dois sentidos”, (LYOTARD, 1967, p. 23) seu passado e seu futuro, conhecidos e desconhecidos, imediatamente vividos e privados de vida. “Enfim este mundo não é meramente um mundo de coisas, mas na mesma forma imediata, como um mundo de valores (beleza e feiúra, gratidão e ingratidão e de bens como mesa, computador, livros, caneta, papel), um mundo prático (são os objetos que estão “aí a diante” para os quais eu me volto ou não). Assim como me volto para as meras coisas, também para as pessoas e animais do meu entorno. São meus amigos ou inimigos, meus servidores, chefes, estranhos ou parentes e assim por diante (HUSSERL, 1992, § 27, p. 66, tradução nossa). Mas, esse mundo contém igualmente um âmbito ideal: se me dedico presentemente à aritmética esse mundo aritmético está ali para mim, diferente da realidade natural na medida em que ele só está ali para mim enquanto tomo a atitude do matemático, ao passo que a realidade natural sempre está ali. Enfim, o mundo natural é também o mundo da inter-subjetividade.

A tese natural, contida implicitamente na atitude natural, é aquilo que permite que eu “descubra (a realidade) como existente e a acolha, como ela se dá a mim, igualmente existente” (HUSSERL, 1992, § 32, p. 73, tradução nossa). É evidente que posso pôr em dúvida os dados do mundo natural, recusar as informações que dele recebo, distinguir, por exemplo, aquilo que é “real do que é “ilusão”. Mas essa dúvida “não altera nada na posição geral da atitude natural” (HUSSERL, 1992, § 32, p. 73, tradução nossa); ela nos faz aceder a uma apreensão desse mundo existente mais “adequada”, mais “rigorosa” do que a que nos dá a percepção imediata; funda a superação do perceber pelo saber científico, mas nesse saber a tese intrínseca à atitude natural se conserva, pois não há ciência que não postule a existência do mundo real do qual é ciência.

“Portanto, o mundo natural, o mundo no sentido habitual da palavra, está constantemente para mim aí, enquanto me deixo viver naturalmente” (HUSSERL, 1992, § 28, p. 67). Para compreender e ampliar os meus horizontes, Husserl afirma para pormos...

fora do jogo a tese geral inerente a essência da atitude natural. Colocamos entre parêntesis todas e cada uma das coisas abarcadas no sentido ôntico por essa tese, assim, pois, este mundo natural inteiro, que está constantemente “para nos aí adiante”, e que seguirá permanentemente aí adiante, como “realidade” de que temos consciência, ainda que nos dê para colocá-la entre parêntesis. [...] desconecto todas as ciências referentes a este mundo natural, por sólidas que me pareçam, por muito que as admire, por pouco que pense em opor-me o mínimo contra elas; eu absolutamente não faço nenhum uso de suas afirmações válidas (HUSSERL, 1992, § 32, p. 73).


3.4 O Samaritano e sua intersubjetividade


Esta parábola aponta para vários sujeitos. Não é o indivíduo. O samaritano (sujeito) que está apontando uma origem, uma gênese[4] aberta, criando uma generatividade, isto é, uma abertura para o futuro. É o sujeito que se origina solidariamente e intersubjetivamente. O sujeito nasce sempre como sujeito intersubjetivo, essa é a gênese. Esse sujeito que nasce intersubjetivamente se desenvolve generativamente e vai se constituindo num mundo cada vez mais solidário. Ao contrário, se a pessoa permanecer na dimensão estática ou descritiva, a tendência será não reconhecer essa gênese intersubjetiva e nem se abrir para uma generatividade. Na parábola o professor da lei só percebe a descrição estática, o imediato da vida, a tendência é da manutenção. Ele não vê as possibilidades criadoras da gênese ativa, por ser criadora e de generatividade. Ele tipifica a pessoa que pensa o imediato, o estático é o definitivo. Esse é o problema da lei, e diante dela não tem como se perguntar pela origem e nem pelo fim. Como fica preso a uma normatização, não percebe o outro como um ser humano dinâmico diante de sua face.

Nessa parábola do mestre Jesus destaco que o sentido é no sujeito uma unidade de valor. A esse respeito na obra a Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty (1994, p. 339) aprofunda esta perspectiva partindo do sujeito como unidade de valor, uma pessoa com sensibilidade (afetividade, coração), vida (alma), corpo (força, encarnação) e cognição (entendimento), é uma pessoa também situada, pois ele é alguém que vive algo e sabe aquilo que vive e sua alma está presente em cada parte do seu corpo, eu completo dizendo que assim é porque ele é alma vivente.

Para a fenomenologia a sensibilidade e a percepção são idênticas no sujeito. É também sua essência, ou melhor seu sentido (eidos). Chauí (2000, p. 122-124) aponta que o que é percebido pelo sujeito é qualitativo, significativo, estruturado e está no que é percebido como sujeito ativo, isto é, dá ao percebido novos sentidos e novos valores, pois as coisas fazem parte da vida e o sujeito interage com o mundo e com outros sujeitos. Na comunicação com outros sujeitos a percepção (o sensível, o afeto) é percebida como o sentido (eidos). Como depende da sócio-historicidade, e da sua intersubjetividade do sujeito este campo é chamado de perceptivo: campo perceptivo ou nos termos de Merleau-Ponty (1994, p. 95-96): “campo fenomenal”. O campo fenomenal envolve significações visuais, tácteis, olfativas, gustativas, sonoras, motrizes, especiais, temporais e lingüísticas. A percepção é uma conduta vital, pois parte da estrutura de relações entre nosso coração[5] (afeto, sensibilidade, percepção, núcleo ou o centro do sujeito na linguagem de Pascal) está ligada ao nosso corpo e o mundo.


Conhecemos a verdade não só pela razão, mas também pelo coração; é desta última maneira que conhecemos os princípios, e é em vão que o raciocínio, que deles não participa, tenta combatê-los. [...] Sabemos que não sonhamos; por maior que seja a nossa impotência em prová-lo pela razão, essa impotência mostra-nos apenas a fraqueza da nossa razão, mas não a certeza de todos os nossos conhecimentos, como pretendem. Pois o conhecimento dos princípios, como o da existência de espaço, tempo, movimentos, números, é tão firme como nenhum dos que nos proporcionam os nossos raciocínios. E sobre esses conhecimentos do coração e do instinto é que a razão deve apoiar-se e basear todo o seu discurso. (O coração sente que há três dimensões no espaço e que os números são infinitos; e a razão demonstra, em seguida, que não há dois números quadrados dos quais um seja o dobro do outro. Os princípios se sentem, as proposições se concluem; e tudo com certeza, embora por vias diferentes.) E é tão inútil e ridículo que a razão peça ao coração provas dos seus princípios primeiros, para concordar com eles, quanto seria ridículo que o coração pedisse à razão um sentimento de todas as proposições que ela demonstra, para recebê-los.

Essa impotência deve, pois, servir apenas para humilhar a razão que quisesse julgar tudo; mas não para combater a nossa certeza, como se apenas a razão fosse capaz de nos instruir. Prouvesse a Deus que, ao contrário, nunca tivéssemos necessidade dela e conhecêssemos todas as coisas por instinto e por sentimento! Mas a natureza recusou­nos esse bem e só nos deu, ao contrário, muito poucos conhecimentos dessa espécie; todos os outros só podem ser adquiridos pelo raciocínio (PASCAL, 1961, n.º 282).

Merleau-Ponty (1994) usa a palavra “percepção”; Pascal (1979) usou “coração”; Chauí (2000) afirma que sensação e percepção têm o mesmo sentido. Portanto, “coração” envolve no sujeito toda a personalidade, sua história pessoal, seus desejos e paixões. A percepção é algo desvelado no sujeito que é o seu sentido (eidos) como maneira de estar e ser no mundo. Percebe-se as coisas como instrumentos ou como valores, reage-se positiva ou negativamente a cores, odores, sabores, texturas, distâncias, tamanhos e muitas outras coisas do mundo. O mundo é percebido/sentido qualitativamente, afetivamente e valorativamente. Quando percebemos uma outra pessoa, por exemplo, uma pessoa com deficiência, ou uma pessoa como aquele que o Samaritano acudiu, não temos uma coleção de sensações e partes que estejam “faltando” do seu corpo, ou de sua mente, mas a percebemos em sua totalidade e por essa relação do “coração” construímos um relacionamento com ela.

O corpo do outro foi o meio pelo qual o Samaritano pode cuidar e expressar seu amor ao próximo. Nesse sentido o corpo é o núcleo do sujeito e no que se refere ao corpo, Lévinas (1992, p. 89) ressalta que o “seu rosto, o expressivo no outro (e todo o corpo humano é, neste sentido mais ou menos, rosto), fosse aquilo que me manda servi-lo”. O especificamente rosto é o que não se reduz a ele. “Aqui o rosto é sentido só para ele. Tu és tu. Neste sentido, pode dizer-se que o rosto não é visto [grifo do autor]” (LÉVINAS, 1982, p. 78).

Compreendemos que o corpo pode simbolizar a existência, é porque a realiza e porque é sua atualidade (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 227). Meu corpo poderá se fechar ao mundo encerrando-me numa vida anônima, mas meu corpo é também aquilo que me abre ao mundo e nele me põe em situação. Por esse prisma Merleau-Ponty afirma que,

Dizer que tenho um corpo é então uma maneira de dizer que posso ser visto como um objeto e que procuro ser visto como sujeito, que o outro pode ser meu senhor ou meu escravo, de forma que o pudor e o despudor exprimem a dialética da pluralidade das consciências e que eles têm sim uma significação metafísica (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 231).

Não é tão simples amar (cuidar) uma pessoa porque o que possuímos não é apenas um corpo, mas um corpo animado por uma consciência. Portanto, a “importância atribuída ao corpo, as contradições do amor ligam-se a um drama mais geral que se refere à estrutura metafísica de meu corpo, ao mesmo tempo objeto para o outro e sujeito para mim” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 231).

Esse corpo se desvela/revela como expressão e fala. Merleau-Ponty descrevendo o fenômeno da fala e o ato expresso de significação ultrapassou definitivamente a dicotomia entre o sujeito e o objeto, e afirma que:

A partir do momento em que o homem se serve da linguagem para estabelecer uma relação viva consigo mesmo ou com seus semelhantes, a linguagem não é mais um instrumento, não é mais um meio, ela é uma manifestação, uma revelação do ser íntimo e do elo psíquico que nos une ao mundo e aos semelhantes (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 266).

O corpo não se reduz a uma propriedade do sujeito. Possui totalidade humana. Não é um instrumento do homem. É modo de ser da pessoa. Afirma Merleau-Ponty que o corpo exprime a existência total, não que seja um acompanhamento externo, mas porque realiza-se nele. A esse respeito, Merleau-Ponty lembra que não posso dizer que tenho meu corpo, mas que sou o meu corpo. Assim como não posso dizer que tenho minha alma, mas que sou minha alma. A minha alma é o meu corpo vivo. O corpo diz fenomenologicamente o todo do meu ser. É nele que se manifestam a consciência, o pensamento (cogitatio), a intenção profunda, a liberdade, o projeto de vida, a necessidade e aspiração, o acolhimento e a recusa, a dor e o júbilo, o amor e a crueldade, a suplica e a prepotência. O corpo é palavra somática.

Quando alguém morre pelo outro, ou doa parte de si mesmo, do seu próprio corpo, temos aí uma palavra contundente. A expressão radical da fala é o dar a sua própria vida pelo outro.

Conclusão

Você precisa deixar sua oferta sobre o altar e se reconciliar com o seu irmão. Para tanto você precisa saber quem é o seu próximo para um aperfeiçoamento na celebração.

Jesus estava dizendo que o seu próximo não é simplesmente aquele que você odeia, mas também aquele que odeia você.

Jesus estava dizendo que o seu próximo são todos aqueles que apresentam uma necessidade de qualquer natureza.

Jesus estava dizendo que eu preciso me ver face-a-face ao outro para senti-lo como o outro, vendo-me também como o outro para alguém.

Pois bem, o aperfeiçoamento no celebrar exige uma decisão: agir com o próximo como o Samaritano agiu.

REFERÊNCIAS

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______. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. 2. ed. Tradução de Pergentino Stefano Pivatto (coord.) et all. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.

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[1] Bíblia Sagrada, Novo Testamento, Evangelho de Lucas capítulo 10 (página 60) - [25] Um mestre da Lei se levantou e, querendo encontrar alguma prova contra Jesus, perguntou: - Mestre, o que devo fazer para conseguir a vida eterna?

[26] Jesus respondeu: - O que é que as Escrituras Sagradas dizem a respeito disso? E como é que você entende o que elas dizem? [27] O homem respondeu: - “Ame o Senhor, seu Deus, com todo o coração, com toda a alma, com todas as forças e com toda a mente. E ame o seu próximo como você ama a você mesmo”.

[28] – A sua resposta está certa! – disse Jesus. – Faça isso e você viverá.

[29] Porém o mestre da Lei, querendo se desculpar, perguntou: — Mas quem é o meu próximo?

[30] Jesus respondeu assim: - Um homem estava descendo de Jerusalém para Jericó. No caminho alguns ladrões o assaltaram, tiraram a sua roupa, bateram nele e o deixaram quase morto. [31] Acontece que um sacerdote estava descendo por aquele mesmo caminho. Quando viu o homem, tratou de passar pelo outro lado da estrada. [32] Também um levita passou por ali. Olhou e também foi embora pelo outro lado da estrada. [33] Mas um samaritano que estava viajando por aquele caminho chegou até ali. Quando viu o homem, ficou com muita pena dele. [34] Então chegou perto dele, limpou os seus ferimentos com azeite e vinho e em seguida os enfaixou. Depois disso, o samaritano colocou-o no seu próprio animal e o levou para uma pensão, onde cuidou dele. [35] No dia seguinte, entregou duas moedas de prata ao dono da pensão, dizendo: - Tome conta dele. Quando eu passar por aqui na volta, pagarei o que você gastar a mais com ele. [36] Então Jesus perguntou ao mestre da Lei: - Na sua opinião, qual desses três foi o próximo do homem assaltado? [37] Aquele que o socorreu! – respondeu o mestre da Lei. E Jesus disse: - Pois vá e faça a mesma coisa.

[2] “Escória” por pertencer a um povo mestiço, por terem misturado-se com babilônicos e árabes; por ter um outro lugar de adoração com imagens de deuses babilônios e árabes combinando com o culto de Israel. A religiosidade praticada pelos samaritanos crescia e os judeus sentiam repugnância em manter relações sociais e religiosas com os samaritanos. Não permitiam a adoração deles no Templo de Jerusalém.

[3] Bíblia Sagrada, Antigo Testamento, Levítico capítulo 21. verso 1 e seguintes (pág. 83) [1] O SENHOR Deus mandou Moisés dizer o seguinte aos sacerdotes, que são descendentes de Arão: — Que nenhum sacerdote fique impuro por tocar no corpo de um parente morto [grifo nosso], [2] a não ser no caso de parentes chegados, isto é, a mãe, o pai, o filho, a filha, o irmão [3] ou a irmã solteira que more com ele.

[4] Ver item 5.6 Proposições provisórias sobre estática, gênese e generação (p. 134).

[5] Pascal relativiza a certeza puramente racional e matemática: “Conhecemos a verdade, não só pela razão, mas também pelo coração” (PASCAL, 1961, n.º 282). Com o coração, de maneira perceptiva, conhecemos o campo fenomenal que envolve significações visuais, tácteis, olfativas, gustativas, sonoras, motrizes, especiais, temporais e lingüísticas.