sábado, 10 de março de 2007

Entendendo, um pouco o fundamentalismo

Para ajudar na introdução à compreensão dos estudantes de teologia sobre o fundamentalismo uso as idéias de três artigos do “O Jornal Batista On Line”. Não tive o cuidado de anotar o dia do acesso e a página do jornal “on line” não armazena e não permite acesso a arquivos anteriores. Poderemos achar os textos usados em arquivos do jornal impresso. Os artigos são de Oliveira[1] Fundamentação e fundamentalismo, parte II; Novaes[2] Palavras Possíveis: Fundamentalismo: Em nome de Deus (final) e Lima[3] Fundamentalismo: realmente a melhor opção? E na conclusão encerro com uma parábola de Rubem Alves que destaca a prepotência existente nas várias áreas do saber.

A partir desses três artigos, usando em sua maior parte as idéias desses autores e aqui e acolá acrescentando alguns comentários quero introduzi-los nesse tema atual na Igreja evangélica brasileira. Quero ainda lembrar que é legitimo adotar idéias fundamentalistas. O que não é legitimo é pensar que esta é a única forma de entender a espiritualidade, a fé cristã e a Bíblia e que todas as outras são erradas, heréticas e nocivas a fé. O fundamentalismo também é nocivo a fé como vamos demonstrar abaixo. Entretanto, todos deverão ter uma coisa em comum, que é a lealdade aos valores do Reino de Deus. O que devem evitar é o sacramento de suas ideologias.

Inicio o texto com Oliveira em seu artigo que destaca a necessidade de aprofundamento em nosso fazer teológico, ele afirma que “a boa fundamentação das teses que abraçamos é uma postura exigida em todos os círculos de construção do conhecimento, não devendo ser diferente na formulação de pensamentos ou doutrinas bíblico-cristãs”.

Para Oliveira o que “diferencia fundamentalismo dos que buscam fundamentação sólida para seus argumentos é a postura frente às proposições conceituais. Fundamentalistas absolutizam - idolatram - a tal ponto suas definições doutrinárias que são incapazes de aceitar a existência de posicionamentos divergentes, sem combater ferozmente, tanto tais conceitos quanto aqueles que os formulam”.

Oliveira traz para o seu dialogo com o leitor um trecho de Alves (2004)[4], que diz: o fundamentalismo protestante teria surgido da necessidade de se contestar a crença de que somente a Igreja Católica seria verdadeira por estar ligada, por uma linha histórica, até as igrejas apostólicas. A produção de Confissões de Fé foi a forma encontrada para provar que o vínculo das igrejas evangélicas com as igrejas apostólicas seria seus compromissos com a essência da fé descrita nos textos bíblicos. Tal busca pela essência teria virado uma obsessão, surgindo, então, a idéia da reta doutrina e fé (ortodoxia) e da adesão doutrinária como necessária à salvação, fato que, na prática, torna a fé na graça de Deus insuficiente. Daí a necessidade que o mundo fundamentalista tem de ser fixo, estável, dominado por idéias e não por sentimentos. A fé em Cristo não está fundamentada em doutrinas, mas numa relação de amor para com Deus e para com o próximo (Veja a Parábola do Samaritano e Tiago).

Continua Oliveira, enquanto fundamentação é uma expressão de natureza epistemológica, fundamentalismo é um termo de natureza predominantemente política, com significado amplo e profundo, passível de aplicação a todos os campos cujos adeptos se sentem os únicos portadores da 'única verdade' conceitual existente. Podemos encontrar fundamentalistas na religião, nas artes, na literatura, na economia, na política, na educação e assim por diante. Por isso, seria reducionismo classificar alguém como fundamentalista simplesmente porque crê num Deus que se revela como criador ou como salvador, em Jesus ou como consolador, no Espírito Santo; ou porque fundamenta suas doutrinas de fé a partir da Bíblia ou adota posições conservadoras. Arrisco dizer, inclusive, que muitos daqueles que são membros de igrejas cuja razão social inclui o termo fundamentalista, não são, a rigor, fundamentalistas pois o que querem, de fato, é viver em paz com Deus e com seus semelhantes e não agir como políticos da religião ou como fanáticos por disputas doutrinárias. Seria injusto se não arriscasse dizer que alguns que se apresentam como progressistas, liberais ou modernos também podem apresentar traços fundamentalistas. Fundamentalismo é, acima de tudo, uma postura política permanentemente extremista, radical. Para fazer prevalecer seus pontos-de-vista, seus seguidores são capazes não só de denegrir a imagem dos que pensam diferente, matando-os socialmente (inclusive para a vida denominacional), mas também de caçá-los como bruxas para lançá-los, física e espiritualmente no "mármore do inferno". Para eles, os que tentam compreender a realidade usando lentes diferentes das suas são a própria encarnação do demônio. Nisso a história comprova que os Protestantes Fundamentalistas conseguiram se igualar aos Católicos Medievais”.

Eu não uso a expressão “católicos medievais” mas, sim, digo, que os protestantes fundamentalistas conseguem se igualar aos cristãos que viviam na Idade Média. Tais pessoas fazem parte de nossa história e contribuíram para a formação de nossa cultura religiosa, assim como seus modos de ser são próprios do ser humano. O agir de forma fundamentalista é uma pratica própria da humanidade com as devidas características do seu tempo histórico.

Enquanto buscar fundamentação – para monografias, dissertações ou teses, ou até mesmos seus estudos você apresenta onde é convidado para falar, ou onde você escreve – é uma postura desejável e necessária. Já a postura fundamentalista é nociva pois, ela

"eleva algo finito e transitório a uma validez infinita e eterna. Neste sentido o fundamentalismo tem traços demoníacos. Ele destrói a humilde honestidade da busca pela verdade, divide a consciência de seus seguidores que refletem e os torna fanáticos. Isto porque são forçados a suprimir elementos da verdade dos quais eles estão veladamente conscientes" (TILLICH apud OLIVEIRA, s/d)

O segundo texto que utilizo nesta empreitada é de Novaes, a ultima parte de seus escritos no “O Jornal Batista”. Para Novais o fundamentalismo é mais ideologia do que teologia. Originou-se, na verdade, em oposição à teologia liberal européia que, hipoteticamente, ameaçava os alicerces da civilização cristã. Porém, embora assumindo uma fachada de resistência aos postulados filosóficos, sociais e científicos como determinantes da hermenêutica bíblica, os defensores do conservadorismo fundamentalista acabaram lançando mão de outros pressupostos ideológicos e filosóficos, como o senso comum escocês.

O senso comum escocês? O que é isso? Como professor de História do Cristianismo, Novaes lança mão dos seus estudos e nos apresenta Thomas Reid (1710-1796), um dos baluartes do Scottish Sense Realism, que afirmava que há “uma verdade universal em todos os tempos e lugares, não mutável nem adaptável a quaisquer circunstâncias. Essa verdade universal pode ser transmitida às pessoas em geral através da linguagem objetiva - seu instrumento de transmissão fiel e inquestionável. Essa verdade transmitida pela linguagem é armazenada e preservada por meio de elementos de memória e registro”.

Como Novais compreende o parágrafo acima: uma aplicação muito simples desses aspectos da filosofia do senso comum à teologia fundamentalista seria a seguinte: a verdade revelada por Deus é repassada à sociedade através da linguagem humana registrada na Bíblia. O texto bíblico representa, então, a memória dessa verdade revelada. O único recurso para evitar que a verdade se perca ou seja deturpada é a interpretação literal das Escrituras. Por isso, a teoria da inspiração verbal (ou do ditado) e a hermenêutica biblicista-literalista formam a essência do fundamentalismo. A escatologia milenarista dos fundamentalistas nada mais é do que uma conseqüência natural da visão literalista.

Como conseqüência desta forma de pensar surgem alguns preconceitos:

1. Contra os estudos científicos, a estagnação intelectual – uma vez que o horizonte do conhecimento já está fechado e nada novo pode ser acrescentado;

2. Contra o desenvolvimento teológico – considerando-se que o dogmatismo rígido do fundamentalismo não permite a reflexão ou a tentativa de tornar a fé compreensível ao pensamento moderno;

3. A ética dualista – em que se cria várias dicotomias entre alma e corpo, igreja e mundo, fé e razão, quantidade-qualidade entre outras;

4. A ausência de qualquer abertura para as questões sócio-culturais – já que a preocupação central dos fundamentalistas prende-se ao supra-histórico e ao sobrenatural, a redução da missão da igreja às atividades evangelísticas entenda-se atividade evangelística aqui como aplicação de métodos que se perpetuam sem acomodações ou flexibilizações desde os tempos do avivamentalismo-conversionista norte-americano (os camp-meetings);

5. A sacralização de práticas religiosas e comportamentais que se ligam mais à tradição dogmática do que propriamente aos ensinos bíblicos (e, muitas vezes, não resistem à exegese mais superficial);

6. O sectarismo incapaz de dialogar com posturas divergentes;

7. A intolerância que não considera como cristianismo autêntico outras expressões de fé desvinculadas de uma ótica denominacionalista rasteira e afunilada.

No Brasil Antônio G. Mendonça é um estudioso renomado sobre o protestantismo e suas vertentes. A partir dos estudos de Mendonça podemos compreender que o "o fundamentalismo não se difunde eclesiasticamente (...), mas ideologicamente, através de instituições pára-eclesiásticas, preponderantemente, estrangeiras. As raras nacionais são arremedos que navegam na mesma esteira".

Maciel Junior (2002) afirma que muitas expressões denominacionais no Brasil estão muito afastada de um debate doutrinário e ideológico no universo acadêmico e se utilizam do fundamentalismo por ser a via menos trabalhosa e a mais inculcada na mentalidade evangélica brasileira:

Hoje, o pentecostalismo clássico não difere tanto do protestantismo, a não ser na sua insistência na repetição da experiência do Pentecostes que o protestantismo recusa. O pentecostalismo posterior, cuja explosão e expansão se deu nos anos 50, enfatizou a cura divina, o que o afastou ainda mais do protestantismo. Os posteriores movimentos, que têm recebido o nome genérico de neopentecostalismo, representam uma ruptura final com o protestantismo. Qualquer observador atento e conhecedor do protestantismo sabe que nesses movimentos a Bíblia foi relegada a espaço secundário, o “livre exame” cedeu lugar ao uso mágico da mesma e assim por diante. Surgiram práticas mágicas, objetos com poderes especializados, correntes espirituais e mesmo alguns deuses estranhos ao cristianismo como, por exemplo, o “deus da corda”, ou do “nó”, especializado em amarrar ou neutralizar os poderes malignos (os demônios).

Novais afirma que por “falta de um protestantismo com uma identidade cultural mais definida deixa-nos à mercê dos desequilíbrios ideológicos do protestantismo norte-americano, com reflexos nem sempre muito nítidos, mas inevitavelmente prejudiciais à saúde e ao bem-estar da reflexão teológica no Brasil”.

O ultimo de minha empreitada é o texto de Lima. O autor faz uma critica a um artigo publicado no “O Jornal Batista” que defende o fundamentalismo. O titulo era "Fundamentalista, sim. Por que não”? na edição número trinta e sete do jornal. Qual era a argumentação do artigo? O autor afirmava que as doutrinas dos Batistas são fundamentalistas, ainda que Jesus era fundamentalista, e que Paulo também era fundamentalista. E a conclusão do artigo foi:

“não há outra opção para o crente fiel senão tornar-se fundamentalista”.

"Acho que está muito claro que é melhor ser um fundamentalista do que edificar sobre a areia".

“Ou se adota a teologia liberal, ou então o fundamentalismo. Só existem estas duas opções? O fundamentalismo é realmente a melhor opção”?

Lima questiona tal artigo apresentando os temas abaixo relacionados dos quais destaco as criticas feitas por ele aos fundamentalistas trazendo um outro olhar, fazendo uma outra analise:

1. A recusa a um diálogo com a crítica bíblica

Rejeitaram a crítica bíblica e fechando-se a um diálogo com ela. Entretanto, os pressupostos e afirmações da alta crítica alemã não devem ser confundidos com a crítica bíblica como um todo. A alta crítica alemã foi (ou é) apenas uma escola ou posicionamento dentro da crítica bíblica. A crítica bíblica é valioso instrumento para nos auxiliar no estudo da Bíblia, fornecendo informações relevantes para sua correta compreensão. Se aceitamos as Escrituras, não precisamos temer sua análise crítica. Além disso, se queremos oferecer respostas consistentes aos questionamentos levantados pela crítica bíblica, devemos estar abertos à investigação e ao diálogo.

A leitura fundamentalista da Bíblia é um entendimento literalista do texto bíblico, que considera sua forma final como a expressão palavra por palavra das Escrituras e a vê como clara, simples e sem ambigüidade. Normalmente recusa-se a usar o método histórico-crítico ou qualquer outro suposto método científico de interpretação e não leva em conta as origens históricas da Bíblia, nem o desenvolvimento de seu texto ou suas diversas formas literárias.

2. O adotar um conceito insustentável de inspiração bíblica

Adotam a concepção do ditado verbal. Segundo esta concepção, Deus teria ditado cada palavra de sua revelação aos escritores da Bíblia, que as escreveram exatamente como as receberam, sem qualquer interferência pessoal. Tal concepção gera alguns problemas. A Bíblia, em sua totalidade, não se apresenta assim. Segundo Lima

o apóstolo Paulo fala da inspiração das Escrituras, mas não afirma que elas foram ditadas por Deus, palavra por palavra (2 Timóteo 3. 16). Neste texto, a palavra traduzida por "divinamente inspirada" tem o significado de produzida pelo Espírito de Deus. O apóstolo Pedro ensinou que os profetas falaram movidos pelo Espírito Santo (2 Pedro 1.21), ou seja, foram impulsionados e dirigidos por ele. Mas este texto não afirma que ele ditou palavra por palavra o que os profetas deveriam dizer ou escrever. Portanto, não há base bíblica conclusiva para esta concepção”.

Outro problema está relacionado a inspiração bíblica no que diz respeito à diversidade de estilos de redação presentes na Bíblia. Se fosse verdadeira a concepção de que Deus ditou toda a Bíblia, palavra por palavra, seu estilo de redação seria o mesmo em todos os seus livros. Mas isto não ocorre, e a causa é a diversidade de escritores, que têm do Pai de Todas as Letras liberdade quanto às diversas formas literárias.

Outro problema está em não levar em conta o caráter histórico da revelação bíblica, a leitura fundamentalista não admite que a Palavra de Deus inspirada tenha sido expressa na linguagem de autores humanos que podem ter tido capacidades extraordinárias ou limitadas e escreveram em diversas formas literárias. Considera o autor humano mero escriba que registrou a mensagem divina.

Ignora os problemas apresentados pelos textos hebraicos, aramaicos e gregos originais e muitas vezes se prende a determinada tradução ou edição da Bíblia.

Na interpretação dos Evangelhos, confunde o estágio final da tradição evangélica (o que os evangelistas escreveram, c. 65-95 d.C.) com seu estágio inicial (o que Jesus fez e disse, c. 1-33 d.C.).

Ignora a maneira como as comunidades cristãs primitivas entenderam o impacto produzido por Jesus e sua mensagem. Por isso, esta leitura literalista da Bíblia tem pouco a ver com o sentido literal genuíno da Escritura.

Dá indevida ênfase à inerrância de detalhes, em especial os que supostamente dizem respeito a acontecimentos históricos ou questões científicas.

Ligado a esta leitura literalista está o não entendimento do princípio Scriptura sola, "somente a Escritura", importante no Protestantismo. Assim, a posição fundamentalista tende a desprezar a Tradição genuína da Biblia que se desenvolveu guiada pelo Espírito Santo e construída dentro da comunidade de fé cristã.

3. Identifica os valores da tradição norte-americana com os valores cristãos.

Idealizaram uma tradição cultural e social norte-americana, cujos valores e práticas lhes são próprios daquela cultura, passam a ser identificados como os próprios valores cristãos. Tal idealização foi grandemente influenciada pela cultura norte-americana das décadas de 1920 a 1970. Assim, os fundamentalistas interpretam e constroem os valores cristãos conforme esta tradição norte-americana por eles idealizada.

Maciel Junior (2002) demonstra como esta identificação se dá, usando como um dos exemplos a década de 70. Nessa década cresceu nas igrejas evangélicas os efeitos da repressão militar da década anterior e, paralelamente, escancararam-se as portas e janelas para as entidades para-eclesiásticas da ultradireita religiosa norte-americana. E cita a maneira como Hap Brooks, religioso estadunidense se referia aos golpes militares na América Latina:

Em outro trecho: “Um dois patrocinadores da campanha de orações, o pastor Hap Brooks, da Florida, aclamou o golpe como ‘o maior milagre do século vinte, o esperado no céu antes que fosse operado na Terra. E após a queda de Ríos Montt em 8 de agosto de 1983 não prejudicou a ampla influência ideológica dos evangelistas da Guatemala e continuaram ser usados ideologicamente pelos grupos dirigentes do país... “Então os tais evangelistas retornaram simplesmente à sua posição ‘apolítica’ tradicional...” “Já na Nicarágua sandinista, onde os líderes evangélicos conservadores declaravam que a tarefa de todo o cristão era trazer o país para mais perto de Cristo”. Isto significava que a revolução estava sob o poder do Diabo. Rejeitavam os Comitês de Defesa Sandinista (CDS) e criaram programas sociais nas áreas rurais para competir com organizações administradas pelos sandinistas. Para Reagan da ‘importância estratégica’ da América Central, isto só pode significar uma coisa: que a direita religiosa sempre se oporá aos esforços dos cristãos centro-americanos de encarar a sua fé como um mandado de libertação” (MACIEL JUNIOR, 2002 apud HUNTINGTON, 1984)

Continua Maciel Junior (2002) “isto aconteceu durante o ano em que o país teve o privilégio de ficar sob a liderança do primeiro presidente (o grifo é meu: era ditador militar) evangélico do continente, Efrain Rios Montt, membro da Igreja Pentecostal Verbo”.

4. Tende a desprezar a razão em favor de uma fé cega

No início do movimento, lançaram 12 volumes intitulados "Os Fundamentos". O conteúdo desta obra é marcadamente apologético, desenvolvendo argumentação e conteúdo de sua lógica. Contudo, algum tempo depois os fundamentalistas foram deixando de lado o apelo à razão. Passaram a defender o ponto de vista de que as verdades fundamentais da fé cristã devem ser aceitas totalmente pela fé, prescindindo mesmo da razão.

Considerar questionamentos, ou cultivar erudição teológica tornaram-se sinais de incredulidade. Não descarta o uso da razão por aquele que crê. O apóstolo Paulo recomendou a Timóteo que fosse um estudioso (1 Timóteo 4.13). É importante ressaltar, também, que o homem escolhido por Deus para ser o apóstolo dos gentios era um dos mais cultos de sua época, sendo notória a sua erudição (Atos 26.24). E isto lhe foi útil na obra missionária, inclusive ao evangelizar os atenienses, quando citou poetas gregos em sua pregação no Areópago (Atos 17. 28).

O conhecimento de Deus por meio de sua revelação não descarta o uso de nossa razão, pois o próprio ato de entender a revelação de Deus consiste em um processo racional. Não podemos, portanto, separar fé de razão, como se fossem duas coisas antagônicas ou uma dicotomia. Uma fé destituída de razão descamba facilmente para o fanatismo.

(In)Conclusão

Entendemos por “fundamentalismo” toda e qualquer doutrina ou prática social que busca seguir determinados “fundamentos” tradicionais, geralmente baseados em algum livro sagrado ou práticas costumeiras, consuetudinárias. Todo o fundamentalismo tende a uma absolutização do “eu”, do “ego” em detrimento do “outro”. Deixa-se de perceber que, humano, o “outro” é em verdade um “outro eu” e termina-se por não reconhecer a validade do ponto de vista do outro. Este é um dos maiores problemas da atual globalização.

Na globalização romana todo o mundo não-romano era considerado “bárbaro”, portanto indigno de considerações e diálogo. Deveriam os “bárbaros” ser globalizados (embora, claro não se utilizassem estas expressões). Na globalização portuguesa sobre o que hoje chamamos de “Brasil” deveriam os chamados de “índios” e ainda os negros trazidos em cadeias por sobre o mar, ser globalizados.

Os fundamentalistas acertaram em querer defender os fundamentos da fé cristã. Mas seu jeito de apresentar essas verdades fundamenta-se em uma ideologia que não é bíblica, apesar das alegações de seus representantes, pois exige adesão firme a rígidas atitudes doutrinárias e uma leitura sem questionamento ou críticas dos conteúdos da religião. Seu apelo é ao "senso comum". De maneira intolerante, exerce uma influência nas pessoas que não permite o crescimento da comunidade de fé e da pessoa humana permitindo comportamentos extremistas. Um exemplo são pessoas que para buscarem uma “santificação” ou “consagração” chegam a cortar o próprio pênis[5].

Por isso temos alertado dos perigos que o fundamentalismo representa. Seria, o fundamentalismo, fruto de insegurança emocional? De necessidade psicológica de poder, de dominação? De infantilidade espiritual? Seria manifestação de orgulho inveterado? De oportunismo político? De ignorância intelectual? A resposta a essas questões exigem aprofundamento e conhecimentos específicos. Por isso, deixo-as no ar.

Somando a tudo isto vivemos num mundo em que o fundamentalismo de mercado impõe seus valores a todos os povos. “Tecnicamente” se possível. À bala se necessário.

O fundamentalismo de mercado apresenta total devoção ao comércio e preocupação social tendente a zero.

Em todas as formas de fundamentalismo ocorre uma busca de absolutização do “eu”, do “ego”. Diz-se “eu tenho razão”, “sou dono da verdade”, você, se pensa diferente de mim, não tem razão. Tem de ser “globalizado”!

A marca da globalização de cima para baixo promovida pelos norte-americanos é o não reconhecimento do outro.

Encerro com uma história engraçada de Alves (2006), que nos ajuda a refletir sobre o nosso caminho metodológico. Muitos pensam que o que dizem sobre Deus tem conseqüências cósmicas (mais próximos da verdade estariam se se contentassem com as conseqüências cômicas)...

O que me faz lembrar a estória de um galo que acordava bem cedo, todas as manhãs, ainda escuro, e anunciava solene aos seus companheiros, bichos de galinheiro: - “Vou cantar para fazer o sol nascer...”

E se empoleirava no alto do telhado, olhava para o horizonte, e ordenava, categórico: '-Co-co-ri-co-có...'

Dali a pouco a bola vermelha mostrava o seu primeiro pedaço e o galo comentava, confiante: “- Eu não disse?...”

E os bichos ficavam boquiabertos e respeitosos ante poder tão extraordinário conferido ao galo: cantar pra fazer o sol nascer. E nem havia sombra alguma de dúvida, porque tinha sido sempre assim, com o galo-pai, com o galo-avô...

Aconteceu, entretanto, que o galo certo dia perdeu a hora, e quando ele acordou o sol já estava lá, brilhando no meio do céu...

Há teólogos que se parecem com o galo. Acham que, se não cantarem direito, o sol não nasce: como se Deus fosse afetado por suas palavras. E até estabelecem inquisições para perseguir galos de canto diferente e condenam outros a fechar o bico, sob pena de excomunhões. Claro que fazem isto por se levarem muito a sério e por pensarem que Deus muda de idéia ou muda de ser ao sabor das coisas que nós pensamos e dizemos. O que é, para mim, a manifestação máxima de loucura, delírio maníaco levado ao extremo, este de atribuir onipotência às palavras que dizemos.

Teólogos são, freqüentemente, galos que discutem qual a partitura certa: que canto cantar para que o sol levante? Neste sentido, conservadores fundamentalistas não se distinguem em nada dos teólogos científicos que se valem de métodos críticos de investigação. Todos estão de acordo em que existe uma partitura original, revelada, autoritativa, e que a tarefa da teologia é tocar sem desafinar. As brigas teológicas são discussões sobre se a tonalidade é maior ou menor, ou se o sinal é bemol ou sustenido. Uns querem que seja tocada com orquestra de câmara e outros afirmam que o certo é tocar com banda. Qualquer que seja a posição, todos afirmam que existe um único jeito de tocar a música. Usando palavras de Lutero, “unum simplicem solidum et constantem sensum” - o sentido uno, puro, sólido e constante. Desafinações, variações ou modificações trazem consigo o perigo de alguma grave conseqüência.

Eu penso, ao contrário, que não é nada disso.

O sol nasce sempre, do mesmo jeito, com galo ou sem galo.

Assim, o galo pode dormir à noite, sem a angústia de ter de acordar na hora certa. Se dormir demais, o sol vai se levantar do mesmo jeito. O que, sem dúvida, diminui seu senso de importância, mas tem a compensação do sono tranqüilo, o que não é de se desprezar.

Observação: tal se dá em outras áreas do saber.

Mais do que isso: o galo pode inventar outros cantos, sabendo que o sol não vai se zangar e vai nascer como sempre, no mesmo lugar.

Traduzido em jargão teológico isto significa “graça”: a bondade de Deus continua a mesma, sempre, independente de nossas afinações ou desafinações. Ele nem nasce melhor quando estamos afinados e nem nasce pior quando estamos desafinados... Temos, portanto, a liberdade de fazer o que quiser... Eu não suportaria pensar que o meu pensamento é tão poderoso que, caso eu pense errado, Deus vai ficar torto.


A partitura tem o nome de teologia, mas quem dança somos nós...


Observação: Bonhoeffer – “a igreja baseia-se na revelação do Coração de Deus”.


Para você conhecer mais sobre o assunto:


ALVES, Rubem. Dogmatismo e Tolerância. São Paulo, Loyola, 2004.


______. Sobre deuses e caquis. Disponível em: <http://revistamissoes.org.br/animacao/textos/25/index.php>. Acesso em 02 abril 2006.

DREHER, Martin. Para entender fundamentalismo. São Leopoldo: Sinodal, 2006.

ELWELL, Walter A. Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã. Trad. Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, 1988. 3 v.

GOUVÊA, Ricardo Quadros. Piedade Pervertida. São Paulo: Grapho Editores, 2006.


HUNTINGTON, Débora. Os “profetas” do anticomunismo na América Central. Cadernos do terceiro mundo. Agosto de 1984. Ano VII, n.º 69. Tricontinental editora, pág. 87 a 95


LIMA, Dalton de Souza. Fundamentalismo: realmente a melhor opção? IN: O Jornal Batista On Line. Caderno Debate de O Jornal Batista. http://www.batistas.com/ojb/ >s/d do acesso.


MACIEL JUNIOR, Edson. A Cultura Popular Brasileira e o Pentecostalismo no Brasil. 2002. 105 f. Monografia (Filosofia da Religião) Pós-Graduação Latus Senso do Departamento de Filosofia, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2002.


MENDONÇA, Antônio Gouvêa. Protestantes, Pentecostais e Ecumênicos. O campo religioso e seus personagens. São Bernardo do Campo, SP, UMESP, 1997.


NOVAES, Carlos Cesar P. Palavras Possíveis: Fundamentalismo: Em nome de Deus (final) IN: O Jornal Batista On Line. Caderno Debate de O Jornal Batista. http://www.batistas.com/ojb/ >s/d do acesso.


OLIVEIRA, Edvar Gimenes de. Examinai Tudo: Fundamentação e fundamentalismo (Parte II) IN: O Jornal Batista On Line. Caderno Debate de O Jornal Batista. http://www.batistas.com/ojb/ >s/d do acesso.


TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. 5ª Edição Revista São Leopoldo, RS: Editora Sinodal. 2004


VIERTEL, Weldon E. A interpretação da Bíblia. Trad. Carlos E. Godinho. 2ª ed. Rio de Janeiro, JUERP, 1979.



[1] Pastor da Igreja Batista Emanuel em Boa Viagem, Recife, PE - E-mail: edvargimenes@uol.com.br

[2] Pastor da IB de Barão da Taquara, Rio de Janeiro, RJ, e professor da área histórica no STBSB. Correio eletrônico: ibbtpastor@domain.com.br

[3] Professor do Seminário Teológico Batista de Niterói e pastor da IB em Icaraí, Niterói, RJ.

[4] O autor não cita as páginas. Atualmente o livro é editado pela Edições Loyola, 2004.

[5] O autor conheceu um caso em Rondônia de uma pessoa que por causa de uma mensagem religiosa, ao chegar em casa cortou o próprio pênis. Não atribuo a mensagem em si, mas ao fundamentalismo que é vivido pelas denominações no Brasil.

Nenhum comentário:

Postar um comentário