quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Igualdade perante a lei? Entenda o liberalismo

Texto do Prof. e filosofo Paulo Ghiraldelli

 Em geral, os conservadores não se dizem conservadores. Não se dizem “de direita”. Aliás, boa parte deles não tem formação acadêmica louvável e são só papagaios que repetem outros (Pondé é um ave rara nesse meio, pois é academicamente bem formado e se assume como “de direita”). Os conservadores, em geral, posam de liberais. Então, dizem que as cotas vão contra a "igualdade perante a lei", um princípio liberal. Eles estão certos?
John Dewey e, mais recentemente, John Rawls, ensinaram que é possível ser liberal de uma maneira mais eficaz que Locke que, afinal, sempre endossou a escravidão. Aliás, não é necessário ser Marx para fazer uma crítica interna ao liberalismo, dizendo o seguinte: a igualdade perante a lei não ocorre na realidade, porque a Justiça se finge de cega, mas ela olha, sim, com um olho, por debaixo da venda. E se nessa espiadela ela vê um negro no banco dos réus, ela estranha que ele possa ser inocente. Assim, Dewey e Rawls pensaram um liberalismo mais forte que o de Locke, que pudesse fazer a Justiça não ser capaz de ficar dando a tal espiadela por debaixo da venda nos olhos. Eles pensaram um liberalismo político que desse um aporte para os grupos minoritários, que sofrem de preconceito, no sentido deles poderem chegar diante da lei em reais condições de serem tratados como iguais.
As cotas e as políticas de ações afirmativas se inserem nessa proposta política de Dewey e Rawls e, não à toa, se originaram nos Estados Unidos, um país multicultural. Ou seja, para os filósofos americanos não bastava só o Welfare State, capaz de dar um empurrãozinho nos pobres, era necessário também uma nova legislação étnica e de minorias, capaz de dar um empurrão em grupos étnicos e culturais distintos, pobres ou não, e, com isso, mudar a mentalidade social como um todo. Isso não tem a ver ou com socialismo ou com o populismo, como os conservadores querem fazer crer, mas tem a ver, sim, com o liberalismo aperfeiçoado. Trata-se de uma novidade autenticamente liberal, criada aqui na América exatamente pelas características do Novo Mundo.
O bom das cotas é que ela promove os negros (indígenas, etc.), mas também os brancos. As cotas colocam de modo mais rápido o negro (e outros elementos de outras minorias) em lugares sociais em que eles não estão e que só chegariam em um tempo muito mais longo do que aquele que podemos suportar. Pois existindo negros nos lugares onde só os brancos estavam, toda a sociedade passa a ver como normal que qualquer brasileiro esteja em qualquer lugar no país. Elimina-se a reserva de lugares para brancos, que é negada formalmente mas que é vigente realmente. Assim, ampliando o convívio entre grupos diferentes, o preconceito tende a diminuir e, com isso, em pouco tempo, a regra liberal de igualdade perante a lei começa a realmente se verificar. A Justiça poderá até olhar por debaixo da venda, mas enxergará diferente. Verá um negro sendo julgado, e como estará acostumada a ver tanto o negro quanto o branco em pé de igualdade em todos os lugares sociais, desconsiderará a cor da pele e tenderá, então, a realmente se manter cega. Só então a igualdade perante a lei irá começar a valer (o equivalente disso, em relação aos pobres, quem faz não é a política de ação afirmativa, com bolsas, mas o Welfare State, com mecanismos outros).
É fácil entender isso. Mas, para entender isso, deve-se ter gosto por Dewey e Rawls e compreendê-los de peito aberto e com um uso sofisticado da inteligência. Ora bolas, é claro que isso nos leva a considerar que teremos muita dificuldade pela frente. Apenas por esse tipo de argumentação que estou realizando aqui, explicar para um racista que essa medida é boa, é uma tarefa hercúlea. Por quê? O racista, no fundo, não quer ser identificado como racista. Ele não pode admitir isso em um país em que o racismo é crime. Além do mais, se ele não admite nem que é conservador, quanto mais racista! Mas, no seu íntimo, esse racista não quer de modo algum que o negro esteja em todos os lugares sociais. Ele quer ir a determinados lugares e encontrar o negro só atrás do balcão ou limpando banheiros. E se ele puder evitar até isso, bem melhor! Ele não vai confessar tal coisa. Ele vai dissimular. E vai dissimular se tornando um falso adepto do liberalismo tradicional. Ele entende o meu argumento e, por isso mesmo, me odeia e vai tentar dizer que Dewey e Rawls são “americanos, e a teoria deles não serve para o Brasil”, ou então vai tentar dizer (com a ajuda de Pondé, infelizmente) que dar ouvidos a pensadores que querem fomentar a esperança social por um mundo melhor é ser “brega”, “babaca” ou “não viril”. No fundo, tudo isso é subterfúgio. Ele sabe que a política de cotas pode dar certo, e se der certo, ele não poderá mais ter a garantia de que, em vários lugares do Brasil, um país com maioria negra, não exista o perigo de suas filhas se apaixonarem pelos negros.
© 2012 Paulo Ghiraldelli é filósofo, escritor e professor da UFRRJ

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